Menu

O Diário de Mogi

Butoh consagra o equilíbrio da vida

22.12.1994  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 22 de dezembro de 1994.   Caderno A – capa

 

A mostra de filmes com Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata, os criadores da dança, trouxe informações valiosas

VALMIR SANTOS 

“Os Mestres do Butoh Japonês”, mostra de vídeos e filmes inéditos que aconteceu na semana passada em São Paulo, no Sesc Consolação, trouxe informações-imagens valiosas para as artes cênicas brasileiras, cada vez mais se nutrindo dos ensinamentos de Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata.

Ohno, hoje com 88 anos, esteve duas vezes no Brasil: São Paulo (1986) Londrina (1992). Hijikata, morto em 1986, aos 66 anos, era, até então, praticamente desconhecido entre nós. No final dos anos 60, eles desenharam um estilo que detonou verdadeira metamorfose na relação do corpo com o espaço.

Mais que desabafo frente ao dedicado momento histórico do Japão pós-bomba, entre 1945 e 1960 (com uma nação se curvando à ocupação americana), transcenderam ao protesto e elevaram sua arte ao panteão dos gênios criadores.

De Twyla Tharp a Pina Bausch, de Peter Brook a Antunes Filho, o butoh se dissemina e marca a dança e o teatro neste final de século. Ou melhor, é incorporado também a outras manifestações, como o cinema. A mostra do Sesc exibiu trabalhos de diretores japoneses que, entre os anos 60 e 70, esboçavam uma estática butoh para as imagens.

Hiroshi Nakamura filmou “Revolução da Carne” (1968) e Takahiho Iimura fez “Dança da Rosa Colorida” (1965) – os dois enfocam Hijikata. Mas foi Chiaki Nagano quem assumiu mais intensamente uma estética butoh para seu cinema, realizando uma trilogia com Kazuo Ohno.

“Retrato” (1969), “Mandala” (1971) e “O Livro da Morte” (1973) correspondem ao processo em que Ohno encontra um caminho distinto – mas complementar – em relação ao seu companheiro Hijikata. Ou seja, ambos fundaram a dança e, com o passar do tempo, fincaram novas raízes.

Conheceram-se em 1954. A primeira colaboração da dupla, “O Velho e o Mar”, de Hemingway, veio cinco anos depois. Ainda em 1959, Hijikata deixava a Associação Japonesa de Dança em polvorosa. Em “Cores Proibidas”, coreógrafa um homem (Yoshito Ohno, filho de Kazuo) mantendo relações sexuais com uma galinha, enquanto um segundo (o próprio Hijikata) se insinua para o primeiro.

No final dos anos 60, Hijikata mergulha de vez em sua “dança das trevas”, se alimentando da escatologia, violência, Sade, Genet, etc. Enquanto Ohno opta pelo espírito. Não esconde sua fé na humanidade. Cristão, acredita que a dança revela “a forma da alma”.

As extremidades, como pés e mãos, sol e chuva, céu e terra, enfim, entram em convergência no caso de Ohno-Hijikata. Sim, porque o butoh parece consagrar a lei da compensação; o equilíbrio físico, pessoal e social como princípio elementar da vida. Oriente-se, mas não desocidentalize-se.

Depois de ver Kazuo Ohno dançar em Londrina (PR) e ter oportunidade de voltar aos anos 60 e 70, através de imagens p&b e coloridas, para contemplá-lo no ponto de ebulição, ao lado do testa-de-ferro Tatsumi Hijikata, ganha-se um cadinho de compreensão do universo corporal construído pelos mestres do butoh.


Ohno estreou aos 43 anos

Kazuo Ohno nasceu em 1906, em Hakodate, Hokkaido. Aos 23 anos, decidiu tornar-se bailarino, depois de assistir à dançarina espanhola La Argentina. Era professor de ginástica quando se matriculou na escola de Baku Ishii (1933). No ano seguinte, descobriu a dança expressionista do alemão Harald Krevtzberg. Tornou-se aluno de Takaja Eguchi, serviu o exército (1938-1946) e, em 1949, estreou seus primeiros solos. Tinha 43 anos. O mundo só deu conta de Kazuo Ohno em 1980, no Festival de Nancy, França, quando ele dançou o solo “Admirando La Argentina”. Esteve no Brasil pela última vez em junho de 1992, no Festival Internacional de Londrina.

 

Hijikata dança o “feminino”

Tatsumi Hijikata nasceu em Akita, em 1928 . Morreu em 1986. É dele o conceito de “ankoku butoh” (dança das trevas). Começou fazendo dança moderna. Mas, em maio de 1959, estreou uma pequena obra, inspirada em Mishima: “Cores Proibidas”. No início, parecia predominar o universo masculino. No final dos anos 60, Hijikata descobre que suas irmãs, vendidas para a sobrevivência da família, moravam nele. O feminino irrompe. O corpo assume forma de um “outro”: gato, vento, pedra ou qualquer ser. Corpo polimórfico em cerimônias misteriosas de transformação. Temido e respeitado, deixou seguidores, como os grupos Byakko-sha, que já veio ao Brasil, e Sankai Juku.  

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

Relacionados