O Diário de Mogi
18.2.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 18 de fevereiro de 1995. Caderno A – capa
Difícil manter a distância emocional no contundente espetáculo do Teatro da Vertigem, encenado em um hospital desativado
VALMIR SANTOS
O peso da crença despenca dos céus em “O Livro de Jó”. A montagem do grupo Teatro da Vertigem é comovente. Religião e existência, tão coligadas, convergem para o coração do homem em desassossego.
Entre Bem e Mal, Deus e diabo, Jó cai no vazio de si próprio. Dessacraliza-se para encontrar o sagrado.
Neste final de milênio de pestes e proliferação da auto-ajuda, o diretor António Araújo e seu grupo se aventuram pela vastidão que separa céu e terra. Como em “O Paraíso Perdido” (1992), encenado em uma igreja, “O Livro de Jó” se passa em palco não convencional: um pavilhão desativado de hospital.
Ritualização do espaço cênico é uma das características marcantes do Teatro da Vertigem. Na peça anterior, a primeira do grupo, o périplo do Anjo Caído trazia imagens fortes.
Agora, os três andares do pavilhão do Hospital Umberto Primo, na região da avenida Paulista, foram reinventados como labirinto onde o público acompanha as cenas. A iluminação de Guilherme Bonfanti e a cenografia de Marcelo Pedroso e o próprio Araújo dão a perspectiva onírica – ou melhor, de pesadelo.
O ambiente hospitalar, com todo seu descalabro público e morbidez, esta representado. O sangue que envolve Jó, em interpretação contagiante de Matheus Nachtergaele, o cheiro de éter, os corredores gélidos, as macas, o soro… Difícil manter a distância emocional em “O Livro de Jó”.
No sábado passado, um espectador desmaiou quando as cenas aconteciam ainda no primeiro andar. Provável mal-estar diante do corpo de Jó mergulhado na pia de sangue.
A finitude da vida desespera. Em nenhum momento cita-se a Aids, a peste do final de século. Não precisa. Jó tem seu corpo, a carne, acometido por várias doenças. Mas o espírito não esmorece.
No trânsito entre o terreno e o divino, Jó faz do verbo resistência. A adaptação de Luís Alberto de Abreu para o texto do Antigo Testamento é extremamente reflexiva. “O homem pode ser puro diante de Deus?”; “Ninguém deve dar conselhos sobre a dor alheia sem ter passado por ela”; “Não existe limites para o discurso vazio?” – são algumas frases de impacto.
Essencialmente preocupado com a ocupação do espaço cênico, o Teatro da Vertigem não descuida da palavra, do visual e da interpretação. Daniella Nefusi (Mulher de Jó), Miriam Rinaldi (Elifaz), Sérgio Siviero (Eliú), Siomara Schoder (Sofar) e Vanderlei Bernardino (Baldad) também se entregam por inteiro ao espetáculo.
Outro aspecto imprescindível nas montagens do grupo é a presença da música. Executada ao vivo, voz e instrumentos (piano e percussão) emprestam a devida leveza ao tema tão pesado.
Na cena final de “Jó”, o público termina sentado numa sala de UTI. É quando o personagem está prestes a morrer e, num instante de rara beleza em vida, é engolido pelo clarão. Como Jó, que experimenta a manifestação explícita do divino, o espectador se vê tomado pelo silêncio. O não-pensar e o Cria dor.
O LIVRO DE JÓ – Adaptação de Luís Aberto de Abreu para o texto bíblico do Antigo Testamento. Direção: Antônio Araújo. Figurino: Fábio Namatame. Direção musical: Laércio Resende. Com o grupo Teatro da Vertigem. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. HOSPITAL UMBERTO PRIMO (alameda Rio Claro, 190, Bela Vista, tel., tel. 288-4863. R$ 12,00. Lotação: 60 lugares. Duração: 75 minutos. Até abril.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.