O Diário de Mogi
10.8.1995 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 10 de agosto de 1995. Caderno A – capa
Personagem de Gabriel Guimard, espécie de gari que sonha virar Superman, emociona com repertório gestual em “Shazam!”
VALMIR SANTOS
A figura do clown é das mais cativantes no teatro. Embute as molduras da comédia e da tragédia para evocar um estado superior da arte cênica: o lúdico, instante de mágica comunicação entre ator e público. Cita-se os personagens fixos da commedia dell’arte, por exemplo.
Gabriel Guimard acrescenta a mímica (ou pantomima) ao clown para emocionar e fazer rir em “Shazam!”, seu espetáculo solo. É resultado de uma intensa pesquisa do gesto iniciada em meados dos anos 80, quando trabalhou com nomes como Denise Stoklos e Paulo Yutaka (fundador do grupo Ponkã). Mais recentemente, fez parte da companhia francesa do mímico Philippe Genty.
Para o devaneio poético, Guimard criou o personagem Extrabão, limpador de chão que sonha em se transformar numa espécie de Superman para combater a solidão.
O pequeno palco do auditório da escola Cultura Inglesa, na Capital, é forrado de “sujeira”, com vários objetos, como vassoura, pázinha, rodo, espanador, enfim, utilizados ao longo da encenação.
Não só o corpo como instrumento número 1 da cena, mas a extensão deste através dos objetos cênicos. Guimard, ou melhor, Extrabão, dá vida ao inanimado. Uma onomatopéia aqui e ali, uma frase ou outra e recurso modesto de luz, também coroam o exercício clownesco.
“Shazam!” não é para grandes platéias. Equilibrando-se sobre o tênue fio que separa o riso do choro, trata-se de um espetáculo intimista. Vamos se envolvendo de tal forma com as duas faces de Extrabão – o lirismo do varredor e a perversão do “alter-ego” -, que o distanciamento sucumbe e cede para a ternura que toma conta do “vão”.
Ao final, depois da despressurização de ícones pops, do desnudamento da alma de Extrabão, paira o silêncio que incomoda e do qual o genuíno clown se alimenta para continuar sua cruzada.
Shazam! – Criação e interpretação de Gabriel Guimard. Direção: Eric de Sorria. Quinta e sexta, 21h30; sábado, 22h30; domingo, 20h. Cultura Inglesa – Teatro 2 (avenida Higienópolis, tel. 226-4322). R$ 10,00. 60 minutos. 120 lugares. Não tem acesso para deficientes.
Cantora Marisoll Jardim é destaque de “Amor Bruxo”
Musical requer bons intérpretes e músicos. “Amor Bruxo” tem a cantora Marisoll Jardim e um quinteto instrumental de tirar o fôlego. A montagem do diretor Roney Villela traduz com fidelidade o espírito flamenco.
Inspirada em “El Amor Brujo”, libreto do espanhol Martinez Sierra, o musical traz nos passos, cantos e ritmos toda a passionalidade do povo andaluz. Aqui, aborda-se o universo dos ciganos, suas crenças, rituais, danças e cerimônias.
Villela, também responsável pela adaptação do texto, conseguiu uma estética flamenca, por assim dizer; contudo não atinge a mesma síntese no encadeamento da história.
A dança e a musicalidade emocionam, mas “Amor Bruxo” perde o rebolado em outro verso da interpretação: o ator. Quando surge o conflito dramatúrgico entre os protagonistas, intensidade se esvai, ainda que se tente sustentá-la pelo fundo musical. Ressalva-se, porém, a presença da veterana atriz, Ana Rosa, com sua densa Tio Rosário.
O palco do Palace, normalmente um espaço difícil de ser trabalhado, tem uma preocupação homogênea. Em dois planos, o cenógrafo Arturo Uranga possibilita inclusive o “deslocamento geográfico” das cenas. A iluminação afinada e os sempre coloridos figurinos (Nívea Guimarães) também dão conta do espírito flamenco.
A emaranhada história de amor que envolve Pedro (Ruben Gabira), Manuela (Lúcia Helena Máximo, um dos mais belos solos de dança), Carmelo (Guilherme Fontes) e Lúcia (Carla Alexandar), apesar de tudo, ganhou uma montagem bem cuidada. (VS)
Amor Bruxo – Inspirado no libreto de Martinez Sierra. Adaptação e direção: Roney Villela. Com Patrícia Salgado, Cláudia Barnabé, Ana Morena, Tereza Artigas, Júlia Sanz, Juliana Moreyra, Ney el Moro, Fredy Allan, Laura Romero, Glauco Luís, Thaís Pinto, Ludmila Dayer e outros. Quinta e domingo, 21h; sexta e sábado, 22h. Palace (avenida dos Jamaris, 213, Moema, tel. 531-4900). R$ 20,00 a R$ 40,00. Até domingo.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.