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O Diário de Mogi

De La Guarda usa espaço aéreo para impactar o público

13.6.1996  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 13 de junho de 1996.   Caderno A – capa

Grupo argentino foi destaque do Festival de Londrina e o polonês Biuro Podrozy também emocionou com teatro de rua

VALMIR SANTOS


Em seu encerramento, no último fim de semana, o Festival Internacional de Londrina (Filo) registrou lotação  em todas as apresentações do grupo argentino De La Guarda. Houve muita expectativa em torno do espetáculo “Período Villa Villa”, com acentuação nos números aéreos – atores suspensos entrecruzando o espaço do ginásio de esportes da cidade paranaense.

O trabalho do De La Guarda remete imediatamente ao do grupo catalão La Fura Del Bals (“Suz/o/Suz” e “M.T.M.”), caracterizado pela representação interativa com o público. Assistir a um espetáculo do La Fura é um convite ao experimento das sensações humanas em seus limites. Seus atores se utilizam, por exemplo, de situações de violência simulada, nas quais o espectador vê sua condição passiva diminuída diante da fúria  sonora e visceral. Não raro, sai-se de uma apresentação ensopado d’água, com respiração ofegante e a sensação de que esteve no olho de um furacão.

Com os argentinos, a aventura não é menos empolgante. São atores, dançarinos, músicos, acrobatas e alpinistas. Transformam 75 minutos de descargo de adrenalina.

Quatrocentas pessoas se concentram em pé num espaço pequeno, corpo a corpo. Uma espécie de antecâmara, na qual são submetidas a paisagem visual no teto que lembra efeitos lisérgicos. De repente, o colorido se dissipa e surgem os homens dependurados em cordas.

As paredes de pano caem e o público se vê como que diante da placenta. Daí em diante, é emoção literalmente suspensa. Homens e mulheres, como ioiôs, se aproximam das cabeças abaixo e, em seguida, lançam-se para o alto. A ocupação também se dá no espaço do chão, com muita correria e música. A trilha é executada ao vivo, com tambores rítmicos pulsando do início ao fim. O grupo, claro, cuidou de vender seu CD na saída.

“Período Villa Villa” não quer testar o espectador. Seu laboratório, ao contrário, convida-o para a viagem coletiva, onde o medo e os impactos sensoriais também se convertem em prazer – estético até. Os diretores Diqui Jares e Pichon Baldinu, mais os seis atores-dançarinos e o diretor musical Gaby Kerpel revelam um entrosamento fora do comum (o risco da vida passa despercebido), apesar de apenas três anos de convivência.

Outro espetáculo acompanhado por O Diário foi “Carmem Fúnebre”, com o grupo de teatro de rua polonês Biuro Podrozy. Utilizando-se de pernas-de-pau, holofotes e fogo – a encenação acontece à noite -, trata-se de uma história tocante; um retrato do mundo contemporâneo onde conflitos esparsos configuram praticamente uma terceira guerra, e sem fim.

A guerra da Bósnia e outros enfrentamentos étnicos, mais a onda nacionalista e intolerante que vem pipocando na nova ordem mundial (vide o deputado ultradireitista Jirinovsky, na Rússia), são as principais abordagens do espetáculo.

Texto, figurino e a concepção geral de “Carmem Fúnebre” surgem dos próprios atores, dirigidos por Pawel Szotak, que fundou o grupo seis anos atrás. Atualmente, o Biuro é considerado um dos destaques do teatro alternativo na Polônia.

O enredo surgiu a partir de depoimentos de ex-refugiados. A encenação ritualística, com a presença da Morte, celebra a crueldade. A cena dos soldados mutilados, com os atores em pernas-de-pau, simulando muletas, cegos mendigando moedas, enfim, é um quadro aterrorizante. O silêncio, a frieza do cenário emaranhado de ferro, o vigor da interpretação do elenco jovem e totalmente entregue, fazem de “Carmem Fúnebre” um estado de luto anunciado com esperança na humanidade; pois paradoxismo tem sido seu principal movimento ao longo da história.

Na dança, o destaque foi a companhia do norte-americano David Dorfman. Há cerca de dois anos, o Movimento da Dança, projeto do Sesc em São Paulo, enfocou o dueto. O que se viu em Londrina foi uma exploração criativa e exaustiva dessa modalidade.

Em “approaching no calm couting laughter”, “Horn”, “Bull” e “Sky Down”, Dorfman trabalha complementariedade e oposição dos gestos e movimentos. Mais que isso, tenciona a relação palco-platéia com mira apontada para a sociedade, quando aborda o preconceito homossexual.

Dorfman costuma dizer que é um atleta que se transformou em dançarino. Isso fica patente em suas coreografias. Os corpos são bastante exigidos e a respiração é precisa. O casamento entre a fisicalidade e a leveza plástica fazem dos seus trabalhos um campo fértil para a arte da dança.

Ao todo, 17 grupos estrangeiros e quatro brasileiros participaram do 9° Festival Internacional de Londrina. Organizado por Nitis Jacon há 25 anos (teve sua edição nacional ampliada), o evento continua mantendo sua condição bienal de um dos principais painéis da cena internacional no Brasil.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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