O Diário de Mogi
18.7.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 18 de julho de 1996. Caderno A – capa
Só uma atriz com a maturidade de Marília Pêra atinge a dimensão artística e humana da soprano Maria Callas em “Master Class”
VALMIR SANTOS
Um dos grandes desafios da interpretação teatral está nos personagens mitificados pelo tempo. Paulo Autran, por exemplo, esperou “amadurecer” para encarar Rei Lear. Dificilmente se encontraria no Brasil um atriz à altura de Marília Pêra para encarnar no palco a diva Maria Callas. Em “Master Class”, a magnitude da primeira e a ressonância histórica da Segunda acabam se harmonizando. O resultado é a dimensão artística elevada à sua condição maior.
Tudo está centralizado na palavra e no gesto da soprano. Mesmo para quem não conhece Maria Callas, seu lado pessoal e artístico chega, ao público de maneira envolvente, emocionante.
“Master Class”, ou “aula magna”, como queria a tradução de Millôr Fernandes para o texto do norte-americano Terrence McNally, reproduz as aulas ministradas por Callas entre 1971 e 1972, em Nova York. (leia texto abaixo)
Nesses encontros, “La Divina” transmitia uma síntese do seu trabalho, marcado pelo rigor absoluto. Desde a postura corporal até a “filosofia” da arte do canto, Callas era irretocável. Escolada pela vida amorosa emaranhada, ela dispensa o psicologismo gratuito.
Essências e perfeição eram metas perseguidas – e não raras vezes alcançadas.
A platéia era frequentada por nomes como Franco Zeffirelli e Plácido Domingo. Daí a peculiaridade do encontro, mais para um espetáculo. Irônica, sagaz, dona de personalidade marcante e condenada a fazer aflorar sentimentos entranhados, no palco e fora dele, a Maria Callas que Marília Pêra apresenta depõe a favor das fortes emoções.
Jorge Takla, o diretor, deixa a atriz com as “máscaras” e a “nudez” da soprano. Nas suas interfaces (a autoritária, a sentimental, a neurótica, enfim) fica difícil aplicar o rótulo. É a Callas humana, conduzida pelos deuses da cena, que nos chega. Tão frágil e forte, uma artista arrebatadora.
Em “Master Class”, por mais que o humor pontue as cenas, algumas deliberadamente abertas, é impossível dissociar a figura da mulher atrás da artista. É um libelo ao canto, ao mesmo tempo em que abraça o direito de levar a emoção às últimas conseqüências.
Bravo, Marília Callas!
Cecília Sofia Anna Maria Calogeropoulous, filha de imigrantes gregos, nasceu em Nova York em 2 de dezembro de 1923. O amor pela música surgiu cedo. Aos 4 anos, extasia-se ao som de uma pianola mecânica; aos 8 já interpreta melodias ao piano; e aos 10 canta árias de “Carmem”. Aos 15 anos faz sua estréia no papel de Santuzza de “cavalleria Rusticana”, em Atenas.
Sua grande oportunidade surge em 1942. Substitui uma soprano da Ópera Real, no papel de Tosca. Casa-se com o industrial Giovanni Battista Meneghini, rico e 30 anos mais velho.
No Scala, seu lar artístico por uma década, conhece Luchino Visconti, que a dirige em cinco óperas. Ela sempre declarou que Visconti lhe ensinou “a arte de representar”.
Em 1953, perde 35 quilos. Fica elegante, linda e atraente. Seis anos depois, separa-se de Manghini e torna-se pública a sua relação amorosa com o armador grego Aristóteles Onassis, um dos homens mais ricos do mundo. Totalmente apaixonada, Callas dedica grande parte do seu tempo à intensa vida social, festas, iates, afastando-se do canto, prejudicando sua carreira e voz.
Tempos depois, Onassis casa-se com Jacqueline, viúva de John Kennedy. Diante de tal rejeição, Callas volta ao palco em 1973. Não recupera a paixão de viver, lutar e criar. Isola-se em seu apartamento, em Paris, onde morre de parada cardíaca em 16 de setembro de 1977, pouco depois da morte de Onassis, grande amora e última esperança.
“Jennifer” reflete sobre criação do ator e violência
O processo de criação de um personagem demanda suor que o público, em sua maioria, não se dá conta. Proporcionar emoção todas as noites não é fácil. O grupo Proteu, de Londrina, está em cartaz na Capital com “Jennifer – O Amor É Mais Frio Que a Morte”, montagem na qual a metalinguagem, o teatro dentro do teatro, permite uma noção da vertigem do ator diante da criação.
Não bastasse a contundência do texto de Randy Buck e, claro, o espírito libertário do cinema alemão Rainer Werner Fassbinder (1955-1982), a peça brinda o espectador com os “laboratórios”, como são chamados os ensaios.
Roberto Lage, convidado pelo Proteu, converge com a proposta estética do grupo paranaense. A concepção de “Jennifer” prioriza a organicidade; a palavra como extensão da movimentação física. A violência causada pela superestrutura das sociedades é mimetizada por Buck em seus personagens. As relações são atritosas, mesmo quando justificadas pela bandeira amorosa. A temática, como se vê, é essencialmente fassbinderiana. Os 43 filmes do ceneasta deixam explícito sua intenção de jogar holofotes sobre o lado escuro do ser humano.
O choque diante da montagem não é gratuito. O palavrão, a lascívia, o beijo “que ousa dizer seu nome”, enfim, tudo conspira para a poesia nua e crua. O porão do Centro Universitário Maria Antonia e a iluminação, com um quê cinematográfico, acentuam o clima “bas-fond”, onde personagens transitam em meio a sacos de lixo.
“Isso aqui não é velório, é teatro”, brada Jennifer (Maria Fernanda Coelho) – no texto do autor norte-americano o protagonista é um homem, encarnado por uma atriz na versão brasileira.
É o tipo de diretor, de certa forma estereotipado pelo tempo, que quer distanciamento brechtiniano, psicologismo stanislavskiano e o escambau são desprezados em nome de uma “verdade interpretativa” que rompe o tênue fio que separa vida e palco.
Tal dualidade está representada nas figuras de Margot (Viviane Eloy) e da própria Jennifer. A primeira deixa o teatro amador (fez “Senhorita Júlia”) e mergulha no inferno pessoal se apaixonando pela diretora. Pura submissão. Fassbinder ofusca Strindberg.
Ao buscar o sentimento, nem que seja pela via da dor, o espetáculo instiga pela sinceridade e força com que é interpretado pelos jovens do Proteu.
Jennifer – O Amor é Mais Frio do que a Morte – De Randy Buck. Direção: Roberto Lage. Com grupo Proteu (Paulo Braz, Viviane Eloy, Regina Fonseca, Valéria Victório, Remir Trautwein, Cacá Scolari, Roni Lima e Maria Fernanda Coelho). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Centro Universitário Maria Antonia (rua Maria Antonia, 294, tel. 255-5538). R$ 12,00 e R$ 6,00 (estudantes). Até dia 28.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.