O Diário de Mogi
29.9.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 29 de setembro de 1996. Caderno A – 4
Na peça “Drácula e Outros Vampiros”, o diretor cria estereótipos para servir de metáfora ao radicalismo da direita, sempre com humor cáustico
VALMIR SANTOS
Discutir o radicalismo do poder neste fim de milênio e a busca desesperada do Homem pela imortalidade da vida com ela é, sempre sob o ponto de vista de um humor cáustico. O diretor Antunes Filho pretende incomodar a sociedade brasileira, mais uma vez, com o seu novo espetáculo, “Dráculas e Outros Vampiros”, que estreou sexta-feira para convidados e cumpre temporada, na Capital.
Personagem encrustado no imaginário ocidental, Drácula entra em cena, com todos os seus estereótipos possíveis, para servir de metáfora ao radicalismo da direita que avança em vários pontos do planeta.
“Ela já se manifesta até na Internet!”, afirma um Antunes preocupado com o clima de “Holocausto” sustentando, entre outros motivos, pela faxina étnica que vem sendo praticada em algumas nações.
O diretor aponta algumas “trilhas obscuras” do mundo contemporâneo, que define como uma grande Transilvânia. “Em nome do nacionalismo, da religiosidade e da moralidade são criados sistemas fascinantes, eternos e vampirescos de manipulação”, argumenta.
“Drácula e Outros Vampiros”, que começou a ser preparado há cerca de 100 dias, é o resultado dos primeiros ensaios de “Nas Trilhas da Transilvânia”, que Antunes chegou a apresentar no ano passado, no Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac), como um esboço.
À época, o encenador classificou a empreitada como “brincadeira”, da qual também participara fazendo o papel de Narrador.
Levou a sério. O espetáculo faz referências aos filmes “B” e às histórias em quadrinhos, por exemplo. Também contém simulacros de Bela Lugosi, Vicente Price e Tom Cruise, remetendo à arte cinematográfica que, como nenhuma outra, construiu o mito em torno dos dentes afiadíssimos do personagem ávido por gotas de sangue. Que aliás, não surgiram em cena. “Seria desagradável”, pondera.
Agora, para valer, Antunes não sobe ao palco. Dirige 27 atores, 22 dos quais participando, em média, há apenas quatro meses do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) – o laboratório de onde Antunes escolhe a matéria-prima das suas montagens.
O ator, para ele, é questão sine que non. E a sua nova leva, com idade variando de 18 a 30 anos, forma base. O elenco é encabeçado por Eduardo Cordobhess (Drácula), Lulu Pavarin (Generala) e Geraldo Mário (Secretário) – este o veterano, com uma década de casa.
“Drácula e Outros Vampiros” encerra a trilogia “fonemol”, como o diretor denominou a linguagem que introduziu a partir de “Nova Velha Estória” e depois usaria em “Gilgamesh”, o último trabalho. Trata-se de uma língua falada inventada, falada aleatoriamente, com sonoridades próximas do alemão e do russo.
Mas o “fonemol” já não rouba a cena. Aparece agora em “algumas situações”, permitindo brechas para a língua pátria. “Estou em trânsito com o português de novo”, confessa Antunes.
O trabalho de voz no CPT se tornou uma obsessão. “Quero chegar a um Tchecov, com o ator falando o português direito, retrabalhando a voz com sentimento, sem ansiedade.”
E a trilogia engloba ainda temas como a relativização do bem e do mal (“vamos colocar o mal no seu devido lugar, como uma complementariedade ao bem”) e a ilusão da imortalidade (“se você sabe que tudo é uma ilusão, não vai se angustiar tanto”).
A parceria com o cenógrafo J.C. Serroni volta a se repetir, com direito a raios e trovoadas. Concessão que Antunes jura não se tratar de um roçar com a imagem. “Não se trata de estética, mas de sintaxe”, explica. “São pequenos efeitos que acabam com as frescuras e vão logo para a ação, como nas HQs.”
Com o processo de individualização que nutriu de culturas orientais, Antunes Filho brande a bandeira da utopia neste final de milênio, em que pese o caos. “Tenho esperança nos eflúvios do Homem e que os políticos se tornem menos corruptos.” É claro, sem jamais perder o humor.
Drácula e Outros Vampiros – Direção: Antunes Filho. Com o Grupo Macunaíma. Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Doutor Vila Nova,
245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 16,00 e R$ 20,00 (aos sábados).
Revelando a coerência artística e humana
Antunes Filho, 67 anos, conversou com os jornalistas na semana passada. Em algumas frases, revelou a coerência do seu pensamento artístico e humano.
VOZ – “Em ‘Gilgamesh’, eu acho que já houve um amadurecimento no aspecto melódico da Língua Portuguesa…Melhor, vou tentar ainda, não sei se consegui…Temos ainda uma prosódia de Portugal com ‘esses’. Quero achar a musicalidade da nossa língua portuguesa, que é linda… O pior texto do mundo com um bom ator fica uma maravilha…”
LUIS MELO – “Queria segurar o Melo, mas não deu…”
EXISTÊNCIA – “A vida, antes de tudo, é um grande playground, onde acontece coisas boas e más.”
TRANSITORIEDADE – “A verdade dura três verões. Tudo está em movimento, como uma onda…”
REGIME – “É preciso avaliar o que é a democracia. Em nome dela, abre-se demais e alguns indivíduos passam a agir como levianos, inconseqüentes. Na democracia, tem que ser enérgico, porque a leviandade é coerente com a ditadura, não com ela. Na democracia, assume-se um fardo de responsabilidade, que custa muito. A democracia é doida.”
MODÉSTIA – “O CPT já fez alguma coisinha por este País…”
NELSON – “Outra vez, estão datando Nelson Rodrigues, assim com fizeram antes reduzindo sua obra à comédia de costumes.’
PESQUISADOR-MOR – “Gosto mais do que faço lá em cima [no sétimo andar do CPT] do que aqui no palco.”
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.