O Diário de Mogi
8.12.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 08 de dezembro de 1996. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
Antonio Nóbrega, Denise Stoklos e a Cia. Parlapatões, Patifes e Paspalhões são convidados do 6° Festival de Teatro Universitário da USP, que começou sexta-feira e prossegue até dia 15, no Centro Cultural Maria Antonia, em São Paulo.
Com espetáculos convidados, Nóbrega apresentará “Figural” (dança) e “Na Pancada do Ganzá” (show musical), enquanto Stoklos mostrou “Des-Medéia”, um monólogo. A trupe Parlapatões, de Hugo Possolo e Alexandre Roit, se incumbirá de realizar uma oficina. Tanto as apresentações como os eventos paralelos (palestras, oficinas) têm entrada franca.
Nesta sexta edição, o Festival de Teatro Universitário, iniciado em 1991 em São Paulo, volta à Capital depois de percorrer várias cidades do Estado. A intenção é firmar-se como referência cultural e artística de novos expoentes nos campos da atuação, direção e dramaturgia.
Originalmente voltado apenas para alunos, professores e funcionários da USP, o festival inova e passa a considerar, a partir deste ano, as várias experimentações teatrais produzidas em outras instituições acadêmicas, como Mackenzie, PUC, Unesp, universidades federais de Mato Grosso, Paraíba, Piauí etc.
Das 53 inscrições de várias cidades do Brasil (Fortaleza, Florianópolis, Campinas, Piracicaba, São Carlos, Pirassununga, Bauru e São Paulo), foram selecionados 11 espetáculos.
ABERTURA
“Des-Medéia” abriu sexta o evento. O monólogo, uma desconstrução do mito Medéia, fala do abandono de seu país por causa de Jasão, o abandono por ele, sua vingança em seus filhos. Denise Stoklos trata ainda da desumanização no cotidiano, ausência de vínculos políticos e ideológicos, diferenças sociais, miséria e violência.
Figuras arquetípicas da cultura popular brasileira são decodificadas por Antonio Nóbrega no encerramento do evento em “Figural” (dia 14), onde passeia por raízes nordestinas e traz à tona, pela primeira vez, o seu personagem Tonheta, que ganharia vida própria em espetáculos posteriores, “Brincante” e “Segundas Estórias”. “Na Pancada do Ganzá” (dia 15), show onde toca acompanhado de um quinteto, é baseado na pesquisa de Mário de Andrade, que percorreu o Norte e Nordeste do País no final da década de 20, em busca da sonoridade peculiar do povo local.
Até o dia 13, é a vez dos universitários. Os espetáculos: “A Destruição de Numância”, de Cervantes, com Universidade Estadual de Santa Catarina; “D. Juan”, de Molière, adaptação de Brecht, com Esalq da USP de Piracicaba; “O Sonho”, de Strindberg, Escola de Engenharia da USP São Carlos; “Vaso Ruim Não Quebra”, de Cássio Pires de Freitas, Filosofia da USP São Paulo; “Revólver – O Novo Testamento Segundo a Morfina”, de Antonio Rogério Toscano, Instituto de Artes Unicamp; “O Marinheiro – Uma Aventura Interior”, de Fernando Pessoa, adaptação de Ueliton Rocha, Estadual do Ceará; “O Tempo e a Gente”, baseado no conto “O Muro”, de Sartre, adaptação de Wilson Boneto; e finalmente “Artaud no Brasil – Uma Odisséia Latino-Americana”, de José Roberto Aguilar, Odontologia da USP Bauru.
Festival de Teatro Universitário da USP – Espetáculos universitários até dia 13, sempre às 21h. Os espetáculos “Figural”, dia 14, 21h, e “Na Pancada do Ganzá”, dia 15, 20h, ambos com Antonio Nóbrega, encerram o evento. Centro Cultural Maria Antonia (rua Maria Antonia, 294, Consolação, Capital, tel. 255-2092 e 255-6842). Ingressos gratuitos devem ser retirados na bilheteria a partir das 18h do dia de cada apresentação. Inscrições para as palestras e oficinas são gratuitas e devem ser feitas com antecedência.
Pensamento, voz e silêncio. São Prerrogativas fundamentais para quem vive da arte de atuar. Quando bem aplicados, constituem instrumentos para ganhar o público; conduzi-lo à emoção que só o teatro, na sua verdade e superior dimensão, pode proporcionar. Maria Alice Vergueiro, que tranqüilamente figura no pódio das grandes damas do teatro brasileiro, é uma exímia dominadora da cena.
Em “No Alvo”, vivendo a protagonista, ela mostra o quanto sabe explorar a maturidade dos anos em que se entregou de corpo e alma a vários personagens (foi uma das fundadoras do Ornitorrinco, ao lado de Cacá Rosset, há duas décadas).
Todas as potencialidades da mãe obsessiva traçada pelo australiano Thomas Bernhard (1931-1989), o autor, são exploradas com maestria.
Megera, inteligente, filósofa por compulsão, poeta iminente, criança e mulher, enfim, as contradições desenham uma presença impactante.
Maria Alice, que sempre pautou sua carreira pela ousadia, pela busca da experiência cênica, consegue captar a difícil e introspecta história de Bernhard, de um existencialismo profundo, projetando o caráter monstruoso e a pequenez sentimental da protagonista.
Em suma, o texto diz respeito à relação de poder entre mãe e filha; o perverso jogo marcado pela submissão e a ditadura de regras. A interdependência – filha escrava precisa de mãe castradora, e vice-versa – é um aspecto intrigante.
O universo pendular das aulas é invadido pelo jovem dramaturgo, um naco de razão como contraponto à mulher etérea e dona-da-verdade.
Num passeio em casa de praia, o trio vivencia questionamento até à medula. Do campo da teoria literária (a matriarca coloca em xeque o talento do jovem escritor) até o massacre existencial, no qual expõem seus vícios e virtudes, “No Alvo” é um texto que atrai o espectador para um exercício de reflexão sobre a condição filosófica de ser e estar.
Seus personagens são radicais. A mãe excede, a filha se submete e o dramaturgo perde o chão.
Quando estreou no Fiac, em agosto, a peça tinha direção de Annette Ramershoven. Na temporada atual, quem assina é Luciano Chirolli, que mantém o impacto da palavra em Thomas Bernhard e, ao mesmo tempo, investe no trabalho de ator, atingindo o equilíbrio.
Agnes Zuliani, que vem de uma interpretação emocionante em “Boa Noite Mamãe”, montagem na qual recebeu indicação para o Prêmio Shell, corresponde à presença limitada e ofuscada da filha.
João Carlos Andreazza, da comédia “A Bilha Quebrada”, também transmite a insegurança do seu escritor dramático, inclusive na movimentação dentro do espaço não-convencional do Instituto Goethe – uma sala.
Mas a montagem é, antes de tudo, uma oportunidade para reverenciar a grandiosidade e o talento de Maria Alice Vergueiro, por irradiar tanta intensidade e lirismo.
No Alvo – De Thomas Bernhard. Tradução: Wolfgang Pannek. Dramaturgia: Barbara Mundel. Direção: Luciano Chirolli. Com Marinez Lima e outros. Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Instituto Goethe (rua Lisboa, 974, Pinheiros, tel. 280-4288). R$ 15,00. Até dia 15.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.