O Diário de Mogi
8.12.1996 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 08 de dezembro de 1996. Caderno A – 4
Dramaturgo pernambucano voltou a São Paulo esta semana com aula-espetáculo e anunciou adaptação de um das suas obras para Antunes Filho
VALMIR SANTOS
São Paulo – O próprio autor de “O Auto da Compadecida” costuma caçoar da piadinha que alguns dos seus detratores espalham pelo Recife, terra natal, dando conta de que o último nordestino brasileiro que falta morrer, depois de Antonio Conselheiro, Lampião e Padim Ciço, é Ariano Suassuna. “Me sinto até lisonjeado”, brinca. Aos 70 anos, dono de uma memória ferrenha e sempre empunhando a bandeira da valorização da arte popular brasileira, sobretudo a nordestina, o dramaturgo voltou a São Paulo esta semana para protagonizar mais duas aulas-espetáculo e, ao mesmo tempo, lançar o grupo instrumental Romançal, retomando o projeto do Movimento Armorial idealizado por ele nos anos 70.
Um bate-papo com Suassuna é como resgatar o prazer da oralidade perdida na modernidade que engole a todos. Bem-humorado, com paciência de Jó para esmiuçar suas idéias a jornalistas com pouca noção da aventura artística o povo nordestino, o atual secretário estadual de Cultura em Pernambuco, cargo que ocupa há dois anos, a convite do governador Miguel Arraes, revela, entre outras novidades, que pretende adaptar uma das suas peças para Antunes Filho. Trata-se de encomenda antiga do diretor do CPT.
Para a empreitada, ainda sem previsão de data, Suassuna vai fundir a história da sua primeira peça, “Uma mulher Vestida de Sol”, escrita quando tinha 20 anos, reescrita uma década depois (e nunca montada), com a versão de folheto de cordel para “Romeu e Julieta”, de um poeta nordestino anônimo. “Não se trata de uma relação textual, mas encaixaria minha história na linhagem da de Shakespeare”, explica, justificando o encontro do rapaz e da moça enamorados cujas famílias se odeiam.
Há duas semanas, estreou em Recife uma adaptação sua para o “Romeu e Julieta” do cordel, com a Trupe Romançal de Teatro, sob direção do sobrinho Romero de Andrade Lima (“Auto da Paixão”). Diz que a montagem não vem para São Paulo justamente para não “atrapalhar” o projeto que vai fazer para Antunes.
Apesar da parceria iminente, o escritor confessa nunca ter assistido à alguma peça do mentor do CPT. Viu a shakespeariana “Megera Domada”, décadas atrás, quando o diretor ainda não desenvolvia um trabalho com profundidade experimental. Inicialmente, segundo Suassuna, Antunes desejava a adaptação do romance “A Pedra do Reino”, mas foi demovido da idéia pelo autor: são 630 páginas e o tempo anda escasso no dia-a-dia desse pernambucano arretado, vestido elegantemente em calça e camisa de linho branco, bastante à vontade no espaço do Teatro Brincante, comandado por Antonio Nóbrega, ex-Quinteto Armorial e fiel seguidor do cruzamento do popular e do erudito na sua concepção de arte.
É a partir dessa perspectiva que Ariano Suassuna reflete, com muita entrega e conhecimento de causa, sobre o processo de consumo e descaracterização das obras por conta da massificação. Mas quem pensa que o discurso bate com o exercício do artista, está enganado. “Eu não faço arte popular”, surpreende. “Tenho uma formação universitária, sou professor e se fosse assumir o rótulo de artista popular estaria sendo falso.”. A autocrítica é uma característica do homem que vive de buscar a arte erudita na raiz popular brasileira.
Essa ideologia cultural, costuma lembrar o dramaturgo, formava a base de criação de dois grandes artistas de todos os tempos: o compositor brasileiro Villa Lobos e o escritor espanhol Federico Garcia Lorca. Aliás, a cultura ibérica, com destaque para a do século 19, serve de inspiração para Suassuna.
Teatro, romance e poesia – nesta ordem – são os gêneros mais identificados na obra de Ariano Suassuna. Contudo, ele disse a O Diário que todas as peças e romances têm na poesia a sua sustentação. Não fosse poesia, dificilmente haveria outras veredas. “Ela é a fonte de tudo”, declama.
Poucos, no entanto, conhecem seus versos ou prosas. Uma aqui, outro ali chegaram a ser publicados em jornais. “É culpa minha e dos editores”, admite. Sua vontade, no fundo, é ver os poemas publicados em único volume, – mas não necessariamente neste formato. A intenção é costurar um romance com as folhas, algumas amarelecidas, que trazem seus poemas desde a adolescência. Já está trabalhando nele, tampouco com previsão para trazê-lo à tona. Mas a resistência não é tanta assim: no ano que vem, a editora portuguesa Átrio vai lançar 20 sonetos do autor.
Empolgado com a conversa, Ariano Suassuna dá de lambuja alguns versos de um dos seus poemas que pretende verter para o futuro romance: “Por isso não vou nunca envelhecer: Com meu cantar supero o desrespeito/ Sou contra a morte e nunca hei de morre”.
Lidar com finanças e outros qüiproquós administrativos não é a praia de Suassuna. Na sua secretaria, em Recife, responde sobretudo pela criação de atividades que sejam coerentes com propostas do “Projeto Cultural Pernambuco-Brasil”, elaborado para ser cumprido nos da gestão Arraes.
Apesar de se declarar um cultivador de raízes populares, verdadeiro baluarte de uma identidade em tempos de globalização, a oposição não lhe sai dos calcanhares. “Muitos acham que sou radical, arcaico; eu às vezes sou mesmo”, garante. Dia desses, recebeu um recado de um dos seus desafetos do meio artístico pernambucano: “Diz para o Suassuna que eu também gosto de raízes brasileiras: inhame, batata-doce…”, ironizou o fulano.
Outra pendenga recente sobre artigo do jornalista Paulo Francis, que costuma tratar a América Latina” (“tenho uma raiva danada dele”) acabou estimulando os neurônios de um recém-formado grupo de rock de Recife, batizado como Paulo Francis Vai Para o Céu. Na capa do primeiro disco, numa paródia ao filme “Na Cama com Madona”, aparece Suassuna e Paulo Francis, lado a lado, sob a frase: “Friends Forever”.
Polemista de bandeira branca (“A única distinção de valor é entre obra boa e ruim”; “Gosto se discute, sim, como se discute muito sobre futebol, religião e outras coisas que dizem que não se discute”), Ariano Suassuna é, ele mesmo, um personagem. Tem muita história para contar e um sonho por ver concretizado: um dia, o nacionalismo cultural será disseminado como principal fundamento de uma sociedade que se pretenda humana e justa – a brasileira.
Romançal consolida Quinteto Armorial
O conjunto Romançal, que se apresentou ontem pela primeira vez em São Paulo, no Teatro Brincante, surgiu em novembro deste ano, quase 15 anos depois do fim do Quinteto Armorial, menina-dos-olhos de Ariano Suassuna no Movimento Armorial que liderou em Recife nos anos 70.
Se o experimental Quinteto introduziu instrumentos populares (rabeca, viola, marimbau, pífano) na música erudita (flauta, violino), para alcançar uma estrutura musical brasileira, menos européia, o Romançal atinge agora uma espécie de síntese da proposta original.
Estão lá o violino, a flauta, o violino e o violoncelo obrigatórios na composição clássica. “A fase de experiências já passou e temos uma musicalidade própria”, explica Suassuna.
A consolidação se dá principalmente pela presença do músico e compositor Antônio José Madureira no quarteto Romançal. Ele participou do Quinteto da década de 70.
Madureira se inspirou em obras da literatura, das artes plásticas, da música e da dança dos séculos 18, 19 e 20 para compor um repertório erudito que reúne os mais diversos gêneros musicais, como valsa, baixão, toada e música de carnaval.
Aproveita para uma releitura de algumas criações suas no Quinteto Armorial, como as peças “Aralume” e “Rugendas”. Em “Suíte Retreta”, traça um perfil popular semi-erudito, abordando cinco danças do universo brasileiro: maxixe, valsa, poca, mazurca e dobrado.
O quarteto Romançal, além do diretor artístico Madureira no violão e viola brasileira, conta com Aglaia Costa Ferreira no violino e rabeca; Sérgio Accioly Campelo na flauta e pífano; e João Carlos dos Santos e Araújo no violoncelo e marimbau. O conjunto, mantido pela Secretaria Estadual de Cultura de Pernambuco e encerrou na Capital sua primeira turnê pelo País.
Sobre a escolha dos nomes Armorial e Romançal, Suassuna “adjetivou” o primeiro, uma substantivo que designa livro aonde vem registrado os brasões, porque vê na heráldica uma manifestação de raiz popular; e fez uma homenagem ao romance, originalmente o dialeto, o latim vulgar falado pelo povo pobre na Idade Média, em oposição às classes cultas.
“Espetáculo” domina a “aula” do autor
Ariano Suassuna diz que “inventou essa história” de aula-espetáculo para mostrar a cultura do Brasil real (qualquer semelhança com o plano de FHC é mera coincidência), em detrimento daquela propaganda pelo Brasil oficial. Mas o que se vê no palco, antes de mais nada, é um homem de seus 70 anos com a plena energia do ator que acabou frustrando em favor da veia de escritor a dramaturgo.
Na aula de quinta-feira, a primeira das duas que programou para sua volta à Capital, um ano depois, Suassuna mais uma vez imprimiu sua pedagogia do sertanejo nordestino que é, fazendo o público, que lotou o Teatro Brincante, rir à beça dos “causos” sacados da memória – é capaz de entrar noite adentro lembrando tipos engraçadíssimos.
Desta vez, porém, não se fez de rogado. Além do “espetáculo” – sua presença e a boa conversa já roubam a atenção -, decidiu partir para a “aula” propriamente dita.
As “aulas” trataram de dois campos definidos pelo autor como o doloroso (trágico e dramático) e o risível (cômico e humorístico). Na primeira noite, acompanhada por O Diário, ele distinguiu o texto trágico do dramático.
“Para que aconteça o trágico, é necessário a presença de um personagem acima do comum, excepcional num grau elevado, o que não ocorre com o drama”, explica. A vida de Getúlio Vargas, por exemplo, segundo o dramaturgo, não caberia numa tragédia, porque o conflito se deu no campo político. Seria um drama. “A tragédia só se dá quando o personagem apresenta um fundo filosófico ou religioso”.
Não há hierarquia entre o trágico e o dramático. Molière não é melhor que Shakespeare, e vice-versa. Antigamente, a comédia era considerada inferior. Hoje não. Para ilustrar sua tese de que o trágico aristocrático, que teóricos contemporâneos sustentam que não têm vez e estão condenados ao passado grego. Suassuna fez questão de ler a adaptação do cordel “O Romance de Romeu e Julieta”, de um poeta sertanejo anônimo, encontrado por ele em 1957.
Ao final da aula-espetáculo, fazendo o público cantar também o enredo que o compositor Capiba escreveu para um bloco carnavalesco rebaixado injustamente (“Queiram ou não queiram os juízes / O nosso bloco é de fato campeão”). Ariano Suassuna vibra como um menino diante da vitória do seu time. Mesmo estranhando a concretude das cidades grandes (passou por Rio, Belo Horizonte, Curitiba), faz questão de transmitir a fibra de quem cultiva a raiz do Brasil nos cantões do Nordeste, celebrando o encontro da identidade perdida.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.