O Diário de Mogi – Domingo, 02 de março de 1997. Caderno A – 4
Exímio nos detalhes visuais, diretor não preparou o elenco para atingir lirismo de Strindberg
VALMIR SANTOS
Luis Damasceno, o primeiro-ator de Gerald Thomas , é homenageado pelo diretor em “Nowhere Man”, espetáculo que estréia amanhã no Festival de Teatro de Curitiba (FTC). “Fui o último que resisti 10 anos na companhia, desde o início”, ironiza Damasceno, 54 anos, em entrevista a O Diário.
Espontâneo, simpático, Damasceno confessa que é mais conhecido no meio teatral como “o tortinho do Gerald”. Até o terceiro ano na Ópera Seca, recebeu alguns convites pra montagens paralelas, depois, necas.
Não se incomoda com as polêmicas em torno da figura de Thomas. “Importante é que ele busca a qualidade como obsessão, não se satisfaz com o comum, sempre busca o novo”, defende.
O primeiro contato para o “Casamento” com o diretor surgiu há 11 anos, quando participou da montagem de “Carmem com Filtro”, na primeira versão que teve Antonio Fagundes e Clarisse Abujamra no elenco. Desde então, participou de todas as montagens. “Quando o Gerald pede uma cena, ele já sabe como vou reagir”, diz.
A intimidade a favor do processo. O diretor de “Trilogia Kafka”, “The Flash and Crash Days”, “UnGlauber”, “Império das Meias-Verdades”, entre outras montagens, tem no work in progress uma característica do seu trabalho. “Isso para o ator é maravilhoso, porque ele não fica parecendo um funcionário público”.
De formação stanislavskiana, Damasceno tem uma forte queda pela comédia (clown, pastelão). “Me preocupo muito com o gesto, procuro não “sujar” as informações para que elas cheguem claras, precisas”, diz.
Gaúcho de Porto Alegre, Damasceno formou-se em Artes Cênicas nos anos 60. Atualmente leciona na escola de Artes Dramáticas da USP.
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Damasceno, niilista e esperançoso
Gerald Thomas busca no “Fausto” de Goethe os personagens de “Nowhere Man”. É a primeira vez que peguei um texto dele e gostei logo na leitura”, admite Luis Damasceno. O ator destaca o enfoque humano que o autor e diretor dá ao novo trabalho.
Daí, a empatia do público já em “Don Juan”, espetáculo anterior, com Ney Latorraca, (aliás, Latorraca está em “Quartel”, de Heiner Müller, que será encenada em Curitiba após o festival). Quem assistiu aos ensaios garante que “Nowhere Man” é das montagens mais claras e emocionantes de Thomas.
Na história aparentemente nonsense, o personagem Fausto está na fila de um banheiro público. De repente, uma explosão. Surge um punk em disparada. Caído no chão, Fausto se esquiva e ri de mais uma peça que consegue pregar.
Thomas transpõe Fausto para o século 21, no seu aqui-agora. Faz uma crítica à voga da similaridade das coisas, da nivelação dos valores. “É quase niilista, mas ao final ele lança alguma esperança”, salienta Damasceno.
A montagem traz Milena Milena e Marcos Azevedo, ambos também da Ópera Seca, além de atores curitibanos, somando nove pessoas no elenco. A estréia mundial será na Dinamarca, em setembro.
Além de “Nowhere Man”, Curitiba também vai ver na semana que vem, a montagem de “Quartet”, de Heiner Müller. No elenco, Ney Latorraca, que já trabalhou com o diretor em “Dom Juan” e Edilson Botelho, conhecido de outras montagens da Cia. Ópera Seca. Thomas havia montado o texto de Müller, com Tônia Carrero. (VS)
Um novo Villela em “O Mambembe”
Minas de Gabriel Villela cede terreno para outros cantos do País em “O Mambembe”, de Arthur Azevedo, que o diretor montou na comemoração dos 50 anos do Teatro Popular do Sesi (TPS). A estética barroca, uma peculiaridade do seu teatro (“Vidas É Sonho”, “Guerra Santa”, “Rua da Amargura”, por exemplo), surge em segundo plano.
Na abertura das cortinas, o cenário uma vez assinado por Villela, expõe uma preocupação com espaços vazios, ao contrário da minuciosidade que outrora, às vezes, provoca uma certa poluição cênica. Uma mala gigante, suspensa, e as sete portas emparedadas, numa espécie de arena, ampliam a presença dos 25 atores que passam pelo palco durante a encenação.
“O Mambembe”, obra que Azevedo escreveu no início do século, é uma homenagem apaixonada ao teatro – àqueles que dedicam suas vidas a percorrer cidades interioranas para levar sua arte às populações locais. O formato é musical e, na montagem em cartaz no TPS, uma grupo regional, comandado por Fernando Muzzi, dá conta do instrumental.
As melodias originais do compositor Assis Pacheco foram substituídas por fragmentos de peças da música popular brasileira, como “Trenzinho Caipira”, de Villa-Lobos, mescladas a clássicos eruditos, como a ópera “Carmen”, de Bizet, e “Aída”, de Verdi.
Como se vê, a intenção de Villela foi desprezar o tom saudosista. O espetáculo, desta forma, ganhou em termos de sátira e paródia. Também o texto de Azevedo ganhou alguns enxertos.
No terceiro ato, o diretor e adaptador criou um concurso de teatro, emprestando uma aura popular à cena. A mineridade ganha projeção no quadro em que a trupe mambembe interpreta um trecho de “Romeu e Julieta”, se Shakespeare, aqui transformada em “Goiabada com Queijo”, para agradar aos censores do festival imaginário.
Eis que de repente surge a figura de uma Veraneio, numa lembrança à premiada montagem de “Romeu e Julieta”, que Villela dirigiu com o grupo mineiro Galpão. Também executado um tema da trilha daquele espetáculo, neste aspecto, usou-se de o saudosismo em maior grau: ao final, uma tela projeta imagens de nomes fundamentais da história do teatro brasileiro (de Cacilda Becker a Ziembinski, por exemplo, passando por Wanda Fernandes, atriz, do Galpão que vivia Julieta e morreu em um acidente.
A primeira parte de “O Mambembe”, pelo menos na estréia, ainda denotava um rigor na marcação coreográfica que lhe tirava o brilho. A partir da metade, porém, o espetáculo embala. São, ao todo, dez coreografias, assinadas por Vivian Buckup.
Não há propriamente grandes estrelas no elenco. Percebe-se em “O Mambembe” uma nova perspectiva no teatro de Villela, tende à “limpeza” cênica, – como se encerrasse uma fase da carreira -, priorizando-se o trabalho de ator. “Mary Stuart”, sua outra montagem em cartaz, com Renata Sorrah e Xuxa Lopes, já trazia esta preocupação. Agora, no musical de Azevedo, está em busca da síntese (interpretativa e cenográfica).
Pena que falte um grande ator ou atriz. Raul Barreto (do grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões) está lá, porém minimizado. (VS)
O Mambembe – De Arthur Azevedo. Adaptação e direção: Gabriel Vilela. Teatro Popular do Sesi (avenida Paulista, 1.313, tel. 284-9787). De quarta à sexta-feira, às 20h30; sábados, às 17 horas e 20h30 e aos domingos, às 17 horas. Ingressos gratuitos devem ser retirados com uma hora de antecedência.
São Paulo – O escritor sueco August Strindberg (1849-1912) teve uma vida pessoal bastante atormentada. De formação puritana, emplacou pelo menos três divórcios. E desde cedo “aprendeu” a conviver com ataques de esquizofrenia. Em contrapartida, foi essa vivência que terminou por alimentar uma obra literária marcada pelo simbolismo e por uma cortante inquietação da alma humana em textos como “Inferno”, “A Defesa de Um Louco” e “O Sonho”, este montado agora pelo diretor Gabriel Villela, com elenco do Teatro Castro Alves, de Salvador (BA).
“O Sonho” também chegou ao palco, há cerca de dois anos, pelas mãos do diretor carioca Moacyr Góes. Na tradução da irmã, Clara Góes, o texto foi rebatizado como “Epifanias”, perfeita conjunção com o universo onírico de Strindberg.
É possível traçar um paralelo entre Villela e Góes. O trabalho do mineiro é marcado pela cenografia barroca, detalhista, como pede a influência popular e religiosa da sua terra natal, Minas Gerais. Foi assim em “A Vida É Sonho”, “A Guerra Santa”, “Rua da Amargura” etc, como uma marca registrada.
Já Góes procurou repercutir a cultura nordestina e a condição de miséria dos migrantes. Sua direção acentuou belas imagens, espelhando o devaneio dos personagens.
“Epifanias” tinha também um elenco bem preparado, diferente de “O Sonho” que, depois de sessões gratuitas no Teatro Popular do Sesi, na Capital, semana passada, agora vai participar do 6° Festival de Teatro de Curitiba.
Ainda que esforçado, o elenco de jovens baianos do Teatro Castro Alves não dimensiona as belas palavras de Strindberg. Villela deposita mais na encenação do que propriamente na interpretação.
E espantosamente um texto do início do século mantém-se com poder de sedução junto ao público. São questionamentos que dizem respeito à humanidade de ontem, de hoje e de sempre.
Agnes, a filha do deus Indra, desce para a Terra, “o terceiro universo, uma esfera de cinza e pó girando no universo, o que provoca de vez em quando tonturas”. Aqui, em carne e osso, entra em contato com os seres humanos e desvenda a dor e a angústia da existência.
Strindberg parece definir a felicidade como uma miragem, sempre inalcançável. “Os seres humanos são dignos de lástima” – é o bordão que Agnes, a “filha dos céus”, repete em várias passagens.
Para o autor sueco, “ser mortal não é fácil”. “O Sonho” pesca uma rede de conflitos para justificar sua tese. O amor, sublime amor, “é o mais doce e também o mais amargo”. Agnes, na pele da mulher que se casa com um advogado, desabafa: “Como é terrível estar casada. Viver a dois é coexistir no sofrimento”.
Nesse martírio todo, em que a platéia é o “paraíso” e o palco, “inferno”, o porvir não é demasiado caótico. Strindberg não aponta culpados. “Como pode a estátua condenar o escultor?”, indaga. Ainda que o barco da justiça afunde, depois das citações aos pacientes mortos em Caruaru, à chacina dos sem-terra no Pará, enfim, Villela reproduz essa esperança com anjos e uma sereia-iemanjá. É uma bela montagem para um belo texto que não ganhou, na preparação dos atores, a correspondência lírica e densa do autor.