O Diário de Mogi – Domingo, 17 de agosto de 1997. Caderno A – 3
Música do novo CD, “Uma Outra Estação”, sintetiza obra do vocalista da Legião Urbana
VALMIR SANTOS
São Paulo – Muita gente que nunca discutiu Freud e Jung em mesa de bar acabou se transformando um pouco em psicólogo de Renato Russo. Cantando à frente da Legião Urbana, em 11 anos de estrada, ele exorcizou seus fantasmas – e os nossos. Ao mesmo tempo gozou como intérprete e ícone de uma geração. Assim, seus fãs testemunham, a cada canção, uma cumplicidade acachapante. Era o irmão mais velho da turma, já disse por traduzir inquietação, rebeldia e a centelha amorosa que mobiliza todo ser no curso de uma vida.
Nos shows, na cara a tapa para a multidão incógnita, Renato Russo não poupava adrenalina. Projeto SP, extinta casa noturna, bairro paulistano da Barra Funda, início dos anos 90. Aniversário da revista “Bizz” – hoje – “Showbizz”. Legião Urbana para assoprar velinhas da publi cação. Ele rola pelo palco, se contorce todo, mastiga as folhas verdes espalhadas pelo chão, se embaraça no fio do microfone. No repertório especial daquela noite, só covers. Dá-lhe Smiths, Rolling Stones, Doors, Hendrix.
O fã torcia por baladas de “As Quatro Estações”, então recém-lançado. E o que veio da fumaça de gelo seco era um Renato lisérgico, totalmente tomado por sabe-se-lá-o-quê. Na terra em transe, era embarcar ou largar. Para aquele público pequeno, foi realmente uma viagem e tanto.
Salto para dois anos depois. Ajuventude lota as arquibancadas do Ginásio do Ibirapuera e brinca de “ôla”, levantando o corpo, esticando os braços. A pista também está apinhada. “É Legião/ é Legião/ Olê, olê, olá”, entoa o coro entorpecido como se formado por fiéis à espera do Messias. E ele vem, detonando “Que País é Este”.
Renato nunca se sentiu à vontade com essa coisa de ídolo de porta-bandeira. Mas a aura lhe perseguia o tempo todo, dado o arsenal polêmico que o poeta carregava em suas letras e na vida pessoal. Cantava “Que País É Este”, naquele Ibirapuera sequioso, quando um garoto qualquer mirou e acertou a latinha de cerveja no alvo/ídolo.
“Pára, pára”, ordenou o cantor aos companheiros da banda. Ficou pê da vida. Se sentiu vilipendiado com a agressão e se retirou do palco. O ginásio estremeceu. Mais de 20 mil pessoas não curtiram sequer uma música na íntegra e ia acabar assim o sonho de Legião ao vivo? Nada! Assovios, aplausos e novamente o coro pedia a volta de Renato. Ele esfriou a cabeça, sabia que suspender o show para uma multidão daquelas equivaleria a genocídio. Voltou, deu sermão e converteu fúria e frescura em uma das melhores apresentações da banda.
São lembranças de uma época rememorada com o lançamento de mais um disco da banda, “Uma Outra Estação”. O trabalho que estava praticamente pronto antes da morte de Renato, dez meses atrás, tem a virtude de resumir a trajetória dos rapazes de Brasilia. Ouvindo-se o CD, fica claro que o vocalista tinha “consciência” da sua partida.
É um disco emocionante. Renato surge desafinado, com voz sôfrega. Fala das dores da vida e do tratamento e luta contra a Aids – uma luta, conforme os amigos e familiares, da qual preferiu abandonar as armas.
Mas “Uma Outra Estação” não carrega na morbidez. Tem as palavras em jorro, dispensando o meio-termo,’ tocando direto nas flores e nas feridas. Renato Russo parece estar dizendo assim: “Olha, gente, estou indo embora mas quero deixar essas belas canções para vocês. Foi tudo muito legal, mas a vida éassim mesmo. E vale a pena. Ah, não se esqueçam de mim, tá”…
Para uma geração que atravessou a utopia amorosa e o vazio político das Diretas que não vingaram – e continua nesta vala social comum dos sem-fim -, a Legião Urbana preenchia parte do chão. Renato, Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá e Renato Rocha, a formação inicial, quarteto-dos-sonhos-em-si, traduzia no som básico de voz, baixo, bateria e guitarra a ração/razão de esperança para um cotidiano amargo.
De cantar as mazelas do País e de sobretudo falar aos jovens de sua época com o coração, a banda foi abraçada por meninos e meninas carentes de referências. Tudo isso somado aos conflitos da impossibilidade amorosa, das pequenas imperfeições das amizades, da hipocrisia familiar e religiosa, da barra de exercer a sexualidade com plenitude, do fantasma da Aids.
As letras convergem sempre para um sentido humano. A “seita” Legião Urbana celebra o fim de todo e qualquer preconceito. A premissa de que cada um leva a vida que quer para si, desde que não vaporize o próximo, reluz como ouro no conjunto da obra. Essa mínima noção de humanismo é colírio para a modorrenta rotina moderna.
“Uma Outra Estação” equivale ao disco “Dois” (1986) em termos de poesia bruta. Há uma suavidade nessa despedida, uma melancolia angelical de solos de violão, guitarras e teclados (Carlos Trilha) a contemplar um ciclo que, com a morte do seu protagonista, chega ao fim. Faixas como “La Maison Dieu”, “Comédia Romântica”, “Dado Viciado”, “Antes das Seis”, “Mariane”, “Marcianos Invadem a Terra” e “Travessia do Eixão” são excelências roqueiras da fábrica Legião, como nos bons velhos tempos.
E a canção que melhor define a figura humana de Renato Russo é “Clarisse”. A história dessa menina de 14 anos, o seu desespero diante da vida, sua solidão, suas tentativas de suicídio, sua prisão no quarto onde o álibi dos discos e livros já não funciona mais, sua convalescença, sua tentativa de extrair lá do fundo da alma um resquício de força para tocar o barco nesta tempestade mundana…
Clarisse é Renato. A voz e o violão são autobiográficos nesta canção; um belo depoimento de um artista para seus fãs que continuam perambulando pelas ruas urbanas, já não com todo o tempo do mundo. Quem encontra apenas crepúsculo nas letras da fase terminal de Renato Russo, é porque não o aceitou como e1e era. Há aurora também.
Mesmo dizendo-se preso à gaiola, ele se despede em “Clarisse” – mais de 10 minutos – como um pássaro novo, longe do ninho, a “voar pelo caminho mais bonito”, tocando um violão triste e paradoxalmente sereno, que silencia vagarosamente – infinito enquanto dura, como ensinou Vinicius. Mesmo mergulhado no seu íntimo, carrega o olhar estrangeiro. Homossexual assumido, Renato também denuncia “A violência e a injustiça que existe/ Contra todas as meninas e mulheres”, acentuando outra vez sua perspectiva humanista. Clarisse é representante do Daniel na cova dos leões, do Eduardo e da Mônica, da Andrea Doria, do Maurício, da Natália, da Leila, do Dado viciado, da Mariane e de toda a geração coca-cola…
Conviver com a Legião Urbana e todo seu carisma foi quebrar muitas barreiras. Foi se conscientizar de um mínimo de cidadania. Foi se apaixonar e se deixar levar pelos meandros do túnel do amor que raramente dá em luz. Foi cantar suas músicas com os amigos nas ruas, praças e ônibus. Percorrer o asfalto à noite, numa esforçada perua Kombi azul, com o som no últirno volume – como sempre se recomendou nos encartes dos bolachões e CDs.
Foi ouvir “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto” pela primeira vez e verter lágrimas. Foi assistir a um segundo show no Ibirapuera e reduzir a percepção para tachar a banda de ultrapassada, dèja-vú, e agora ter a chance da restauração, por mais hipócrita que pareça.
Afinal, quem haveria de rimar romã com travesseiro?
Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.