O Diário de Mogi
24.8.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 24 de agosto de 1997. Caderno A – 4
Marco Ricca vai aos limites do personagem nesta montagem do diretor Ulisses Cruz
VALMIR SANTOS
São Paulo – Ninguém passa incólume ao príncipe Hamlet. Desde o final do século, até os tempos que correm, seus intérpretes mais veementes foram ao fundo do poço para trazer à luz o som e a fúria deste que é considerado um dos mais perfeitos personagens criados por William Shakespeare. Edmundo Kean, Laurence Olivier, John Gielgud, Peter O’Toole, Sarah Bernhardt, para citar célebres nomes do teatro e do cinema mundial, sentiram os fantasmas em seus calcanhares.
Nestes anos 90, o diretor José Celso Martinez Corrêa e sua companhia Uzyna Uzona celebraram Shakespeare no Teatro Oficina com uma montagem dionisíaca e hifenada de “Hamlet”. Zé Celso carnavalizou, com Marcelo Drummond, a cena em quase cinco horas de espetáculo. É a lembrança mais fresca da peça em palcos paulistanos.
E “Hamlet” é revisitada outra vez. Quando Ulysses Cruz topou o convite de Marco Ricca para o projeto da peça, havia uma dúvida hamletiana se o diretor radicalizaria na sua concepção pop para o bardo inglês. Quem assistiu a “Péricles – Príncipe de Tiro”, outro Shakespeare, que resgatou o público para o Teatro Popular do Sesi, sabe do que se está falando.
O forte apelo visual daquele espetáculo, com uma complexa mecânica de palco e cenários grandiosos, acabou os jovens para a tragédia que, afinal, era sua essência. No recente “Rei Lear”, outro mítico papel shakespeariano, com Paulo Autran encabeçando Ulysses Cruz surgiu comedido, talvez pela presença do ator consagrado.
Mas o”Hamlet” que se vê no palco do Teatro Sérgio Cardoso, ainda que com solos de guitarra e com a globalizadíssima “As Time Good Bye” equilibra o espírito e a palavra de Shakespeare com este final de século descartável. Mais: não tem vergonha de apontar em meio à tragédia clássica.
O “Hanilet” de Ulysses Cruz indica um momento luminoso na sua carreira. E a maior evidência da maturidade artística, em 12 anos de direção, cristalizando um processo que reconhece a importância do trabalho de ator, mas não ignora o que lhe rodea em cena, a relação espacial, física.
Alguns elementos refletem, aqui, a evolução conceitual do encenador. Os músicos que executam a trilha ao vivo retorna ao mesmo segundo plano, suspenso. O público vê e ouve os músicos. O preenchimento do espaço (plano, lateral e aéreo) se dá pela movimentação dos atores, quer em bloco ou individualmente.
Outro aspecto marcante desta montagem é a possibilidade que o diretor tem de trabalhar com atores já afinados com sua concepção de teatro. Por exemplo: Mariana Muniz, Marcos Daud e Hélio Cícero estavam em “Perícles”; Rubens Caribé e Milhem Cortaz contracenaram em “O Melhor do Homem” – direções do próprio Cruz. Nos papéis principais, tem-se Ernani Moraes (ex-Tapa), de volta à Capital como o Rei Claudius, e o primeiro-ator da montagem, Marco Ricca, na pele de Hamlet.
O perfil do personagem, transitando entre a loucura deliberada e a consciência dilacerante, remonta, de forma impressionante, aos dois últimos papéis que Ricca interpretou no teatro. A visceralidade de Paco em “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (Plínio Marcos) e a busca utópica de Treplev em “A Gaivota” (Tchecov) estão embutidas na angústia e no desespero do príncipe da Dinamarca.
Logo na sua primeira entrada, Ricca deixa transparecer no corpo a retidão de hamlet. Seu andar é tenso, passa assim praticamente o tempo todo, como se cobrado pela força divina que vem dos céus e entra em choque com a confusão terrena. O paiem vida assusta, imagine seu fantasma! (A premissa freudiana em Shakespeare é uma leitura bastante interessante).
Uma navalha na carne. É assim quem o Hamlet de Ricca monologa com o “ser ou não ser” contemporâneo. Na boca de cena, rosto espumado, barba para fazer, a vida lhe roga um sentido… Mas, como bem afirma o Rei claudius adiante, em simulacro de comiseração movido pelo chão que lhe engole, “palavra sem pensamento nunca comovem os céus”.
Marco Ricca, 34 anos, vai aos limites que Hamlet impõe. O humor nervoso, a vigília do olhar espantado, a dor que penetra como uma faca, a composição corporal da loucura sã, enfim, as músicas ficam patentes em cada fala, gesto ou movimento.
Não é só Hamlet/Ricca quem quebra o gelo da tragédia, de quando em vez, com humor sutil. Ernani Moraes, um tio Claudius fanfarrão, e principalmente Marcos Daud, um impagável Polonius e um coveiro idem, tê m lá seu quinhão. Daud, aliás, traduziu e adaptou o texto de Shakespeare.
Na linha, pode-se dizer, cômica, destaca-se ainda Hélio Cícero (Fantasma do Pai de Hamlet e o hilário Osric, um cortesão). Plínio Soares, (Horácio, amigo de Hamlet), Rubens Caribé (Laertes, filho de Polonius), Mariana Muniz (Gertrdes, mãe de Hamlet) e Julia Feldens (Oféilia, filha de Polonius, difícil e alentadora performance desta gaúcha de 19 anos) são outros destaques de um elenco coeso.
Esta superprodução prima por uma estrutura gigante de cenário, que representa um castelo medieval mais não “polui”. Ao contrário, Ulysses Cruz e Cyro menna Barreto, responsáveis pela cenografia, atentam para a importância do espaço vazio, o vácuo como força-motriz . A iluminação de Domingos Quintiliano desenha o espaço, o tempo e o ator com uma influência raramente alcançada. Os figurinos de Elena Toscano trazem o estilo étnico-militar em voga na moda européia, sintomaticamente atemporais.
O quarteto musical (guitarra, teclados, sax eletrônico, violoncelo e flauta), sob direção de Eduardo Queiróz, interpreta a trilha sonora ao vivo, dialogando do início ao fim com a movimentação dos personagens. O tom minimal traduz a imperfeição humana em seu estado mais instintivo/primitivo.
É a grande montagem deste ano nos palcos paulistanos, até agora. Em cerca d eduas horas e meia, em dois atos, não há indício de cansaço. Tampouco é fast food, porque a densidade e o impacto não diluem. O espectador vai encontrar um Shakespeare revigorado para o teatro de hoje. “A peça é o meio pelo qual eu apanharei a consciência do rei”, deduz Hamlet, quando pede à trupe de atores recém-chegada ao reino que encene o assassinato do seu pai. É espelho do autor que Cruz, Ricca e cia. fazem refletir em direção aos olhos de uma platéia que, como na história do príncipe, também habita este “lugar cheio de truques” que é o mundo.
Hamlet – De Willian Shakespeare. Direção: Ulysses Cruz. Com Bartho de Haro, Marcelo Decária, Marcos Suchara, Nicolas Trevijano, Plínio Soares e outros. Quarta a sábado, 20h. Domingo, 18h. Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, tel. 288-0136). R$ 20,00 (sexta e domingo) e R$ 25,00 (sábado). Duração: 150,00, dois atos com intervalo de 12 minutos. Censura livre. Até 15 de outubro.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.