O Diário de Mogi
14.9.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 14 de setembro de 1997. Caderno A – 4
Nelson de Sá lança coletânea de textos sobre a cena teatral na metade dos anos 90
VALMIR SANTOS
São Paulo – Em cerca de nove anos de crítica, Nelson de Sá conseguiu imprimir um estilo bastante adverso dos seus contemporâneos e predecessores na análise jornalística do teatro. Sua atitude pouco condecendente cóm a chamada classe teatral, esquivo ao paternalismo macarrônico, é um diferencial que depõe em favor de uma ética mais do que jornalística, pessoal.
Se Frank Rich, o crítico do “New York Times”, é conhecido como “o açougueiro da Broadway, como Sá gosta de lembrar, este seria então o equivalente no jornalismo brasileiro, guardado o devido tom sensacionalista. A contundência e a sem-cerimônia com que assina suas críticas na “Folha de S. Paulo” lhe rendeu, como se praxe, muitos “inimigos”. Mas, por outro lado, o respeito também fundamentou-se.
O distanciamento do personalismo afetado de autores, diretores e atores, laureados até final dos anos 80, permitiu ao crítico se ater somente ao objeto artístico, ao espetáculo em si. A troco de muitas réplicas, de muitas cartas desaforadas, de muita bílis destilada, o jornalista da “Folha” acabou diluindo um pouco da cultura protecionista em relação aos artistas de teatro. Chega de piedade e vamos à arte, que é o que interessa, parece ter exclamado.
Quando começou a escrever sobre teatro, Sá estava na casa dos 27, 28 anos. Em função da idade, trazia um desprendimento para transmitir ao leitor, alvo confesso, o que pressupunha verdade, por mais que às vezes subjetiva. Escrever para um jornal que endeusa a objetividade também foi – e continua sendo – desafio e tanto.
Teatro é arte de uma humanidade infinita. Sintetizar a apresentação de uma peça com olhar hermético é sacrificar sua essência. Nelson de Sá surge na platéia sempre munido de bloquinho, anotando falas/falhas. Se deixa respaldar pela técnica, obviamente, mas a percepção aguda está lá, antenada com a emoção.
Não faz o gosto não gosto. Mas não tem pudor algum em concluir que uma peça é chata. Tampouco se esquiva da beleza de uma Bete Coelho, elogiando-a como bela, sim. Conceitos subjetivos, vale lembrar de novo, sobrepostos ao padrão jornalístico. Ele, crítico, também se permite um pouco espectador. Sentimento e razão, eis a dupla via.
São considerações preliminares de quem acompanhou, na primeira metade desta década, boa parte das críticas publicadas na “Folha”. Elas estão agora compiladas em “Divers/Idade – Um Guia para o Teatro dos Anos 90”, lançamento da editora Hucitec. Aqui, Nelson de Sá reúne seus principais textos e produz um instantâneo do que se está levando nos palcos do Brasil e do mundo. A “orelha” é assinada por José Celso Martinez, enquanto a fotógrafa Lenise Pinheiro responde pelo rico material ilustrativo.
De 90 a 96, o exercício da crítica representou também o amadurecimento do jornalista. Antes, Sá conheceu Miroel Silveira, trabalhou com Paulo Francis. Se angustiou pela influência “avassaladora” de Décio de Almeida Prado, 80 anos, o pai da crítica teatral brasileira. Essa formação é descrita no último texto do volume, adaptação de palestra sua no Festival Internacional de Londrina.
Em 479 páginas, acompanhase o esforço obsessivo de Sá em interpretar para onde estão soprando os ventos do teatro. Esta ânsia pelo novo, pelo crítico-antena a que se propõe, baliza o trabalho do jornalista na “Folha”.
Algumas questões lhe são pertinentes. Na virada dos anos 80 para os 90, a estética visual cedeu espaço também para o verbo, numa valorização da dramaturgia. Como sintoma maior, o crítico cita a morte do encenador polonês Tadeuz Kantor, em dezembro de 1990, fonte da qual Gerald Thomas bebeu até a última gota.
Nessa guinada para a dramaturgia, portanto, despontam revival de Shakespeare e Nelson Rodrigues. Na esteira, surgem nomes na cena brasileira, como Luís Alberto de Abreu, Fernando Bonassi, Beatriz Azevedo, Hugo Passolo, Bráulio Tavares.
O critico também identifica a retomada de um teatro popular calcado no rito religioso. Encenadores como o pernambucano Romero de Andrade Lima (“Auto da Paixão”), o mineiro Gabriel Villela (“Rua da Amargura”), e o paraibano Luiz Carlos Vasconcelos (“Vau da Sarapalha”) catalisam uma simbiose entre o erudito e o popular. E o acento religioso, cristão, transcende o regional e chega à cultura urbana nas montagens do jovem diretor Antonio Araújo (“O Livro de Jó”).
“Divers/Idade” reflete outro aspecto marcante na crítica de Sá. Trata-se de uma preocupação com o teatro que estã sendo feito lá fora. Ele costuma acompanhar temporadas em Londres e Nova Iorque e acaba servindo como introdutor de muitos nomes até então desconhecidos por aqui. Nesta era globalizada, nada mais pertinente.
Foi assim que “Angels in America”, a peça do americano Tony Kushner, começou a ganhar espaço no Brasil. Sá considera este o espetáculo-síntese dos anos 90, com sua forte temática social, política, sexual, enfim, demasiada humana. E se leu sobre o diretor canadense Robert Lapage, sobre a diretora americana Elizabeth LeCompte (que depois veio ao Brasil com seu Wooster Group). E se leu sobre o escritor e dramaturgo caribenho Derek Walcott, depois Nobel de Literatura, que reivindica a volta dos poetas ao teatro, expurgados pela cena moderna (ou pós).
Além das críticas, propriamente, o livro apresenta entrevistas e panoramas. Sá, por exemplo, costuma “visitar” a temporada carioca uma vez por ano, estabelecendo a ponte num eixo normalmente pichado pelo preconceito em relação ao “teatrão”, comercial. No Rio, como se sabe, existem ótimos trabalhos com gente como Aderbal Freire Filho, Amir Haddad, Moacyr Góes e Enrique Diaz, para citar alguns diretores.
Como o próprio intertítulo sugere, “Divers/Idade” resulta exatamente num guia para o que vem sendo feito nos palcos brasileiros e internacionais. É claro, não se pode abarcar tudo. Sá até que tenta. De quando em vez assiste a algum espetáculo “à margem”, como o fez em “Boca de Lobo”, com garotos de periferia que verteram a linguagem do rap para o teatro.
O livro constitui, por extensão, uma apreciação crítica da crítica. A coletânea de textos expõe um Nelson de Sá passional, que pulsa pelo teatro diante de tanta adversidade – há o cinema, a música e a televisão, donos do mercado cultural. A distância jornalística não bloqueia a veia teatral. Peças amadoras, cursos de dramaturgia, assistência com José Celso Martinez (“As Boas”), enfim, Sá não passa incólume. Pode-se descordar das suas interpretações, com certeza, mas “Divers/Idade” é a resposta de quem cumpre o exercício da crítica com paixão e entrega diária.
Divers/Idade – Um guia para o teatro dos anos 90 – De Nelson de Sá. 479 páginas. Fotos de Lenise Pinheiro. Lançamento da editora Hucitec (rua Gil Eanes, 713, São Paulo, CEP 04601-042, tel. 530-4532). R$ 38,00.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.