O Diário de Mogi
12.10.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 12 de outubro de 1997. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Problemas, problemas, problemas… Quer na boca do primeiro-ator do grupo, Martin Wuttke, 35 anos, quer na boca do assistente de direção, Stephan Suschke, 36, trata-se da palavra mais repetida quando o assunto diz respeito ao Berliner Ensemble. Da “sombra” do seu fundador e ideólogo, Bertolt Brecht (1897-1956), passando pela marcação cerrada dos herdeiros, pelo patrulhamento político-ideológico após a queda do Muro de Berlim (1989), até o recorrente aperto financeiro, enfim, vários são os obstáculos enfrentados pela lendária trupe alemã criada há 48 anos.
São notas destoantes tocadas sem constrangimento, aliás com muita transparência, por Wuttke e Suschke, na conversa com os jornalistas brasileiros na quarta-feira passada, véspera da estréia de “A Resistível Ascensão de Arturo Ui”. A montagem foi encenada quinta e sexta, no Teatro Sesc Anchieta, e marcou a primeira turnê do Berlilner Ensemble pelo País, com apoio do Instituto Goethe.
Wuttke fala dos problemas com conhecimento de causa. Ele foi diretor artístico da companhia durante nove meses, logo depois da morte de Heiner Müller, no final de 1995, que inclusive assina a direção do espetáculo apresentado em São Paulo. Wuttke abdicou do cargo justamente por causa da “canonização” que ainda cerca a obra do dramaturgo alemão.
“Os herdeiros da família de Brecht e muitos políticos ainda vêem a obra como se fosse um museu. Quem tem idéias novas encontra muita resistência”, argumenta o ator.
No contexto ideológico, o entrave é a revisão histórica pela qual o mundo geo-político vem passando nos anos 90. Para Wuttke, o teatro político como instrumento revolucionário não se sustenta mais com o panorama atual. Uma alternativa, destaca o ator, seria encontrar uma terceira via, fiem à esquerda, nem à direita, que permita um novo ponto de vista.
Por trás dos seus óculos escuros, com pinta de ator cinematográfico, Wuttke aprofunda sua análise. Na cena alemã, o Berliner Ensenble constitui uma das últimas resistências ao chamado “teatrão”, aquele que reza segundo o lucro comercial. “Hoje, nossos palcos correm atrás dos sucessos da TV e do cinema”, critica.
Conseqüentemente, mudou também a percepção do público. Antes do Muro cair, predominavam os espectadores do lado oriental da cidade. Hoje, a platéia é formada basicamente por gente que tem o olhar ocidental como parâmetro de espetáculo. “Antes, comprava-se cinco ingressos com o valor de uma camiseta. Hoje, o custo de cinco camisetas equivale a um ingresso”, compara o assistente de direção, Stephan Suschke. Ao que parece, o périplo para se levar uma montagem ao palco, nos tempos que correm, é tão comum aqui quanto lá fora.
E por falar em dinheiro, os representantes do BE não revelam o valor, mas garantem que o subsídio do governo alemão reduziu consideravelmente nas últimas temporadas. Para manter uma equipe média de 30 pessoas, incluindo o elenco de 22 atores, é preciso muito fôlego administrativo. O que Wuttke provavelmente percebeu, decidindo canalizar toda sua energia para o palco – o empreendimento, no caso, é de grande montagem, mas condizente com sua condição de artista maior, corno os críticos do seu país reconheceram quando da estréia de “Arturo Ui”, em 1995, outogando-lhe o prêmio de melhor ator daquele ano.
Wuttke, é claro, não chegou a conhecer Brecht. Ele não mitifica tanto as teorias do homem que catalisou a revolução teatral na Alemanha pós-guerra. Na sua opinião, a técnica do distanciamento se tornou lugar comum em qualquer montagem nos quatro cantos do planeta, como uma incorporação elementar. “Um personagem mau tem que ter algo de bom também, e vice-versa. Se for uma, coisa só, fica muito chato”, explica. Ele faz bagle das milhares de toneladas de papéis gastos em livros que mais teorizam sobre o distanciamento do que realmente o levaram à sua prática.
Peça adapta gângster para o regime nazista
São Paulo – “A Resistível Ascensão de Arturo Ui” foi escrita por Brecht em 1941, durante o exílio na Finlândia. Ele se inspirou na Chicago de Al Capone e suas guerras de gansters para reproduzir sua época e o período nazista. Goebbels, o homem que ascendeu Hitler, por exemplo, é um dos personagens mais explícitos.
A crítica de Brecht, porém, transcende o nazismo. O dramaturgo quer desacreditar também a sociedade sem escrúpulos, dominada por egoístas e arrivistas, o mundo sem solidariedade do capitalismo.
“Arturo Ui é um papel fascinante. Ele é um bom entretainer”, observa o intérprete Martin Wuttke. A turnê brasileira do Berliner Ensenble foi desfalcada pelo ator veterano Bernhard Minetti, 90 anos,com problemas de saúde. Sua performance no papel de Ator (dentro da peça) é uma das mais elogiadas pela crítica teatral alemã.
O BE foi fundadopor Helena Weigel e Brecht em 1949. Após a morte do autor, em 1956, Helene continuou seu trabalho. Como sucessores dela, passaram pelo grupo Ruth Berghaus e Manfred Wekwerth – até que no início da temporada 1992/93 o BE foi transformado de teatro municipal em companhia limitada.
Wuttke comanda espetáculo
São Paulo – Não foi por acaso que Charies Chaplin associou o seu célebro personagem Carlitos à figura de Adolf Hitler. Há muito de cômico na expressão gestual do ditador. A começar pelo bigodinho indefectível. Pois o ator Martin Wuttke e a encarnação dos dois no papel de “A Resistível Ascensão e de Arturo Ui”.
E ele, Wuttke, o dono do espetáculo. Nas apresentações do Berliner Ensemble no Teatro Sesc Anchieta, quinta e sexta-feira passadas, o que se viu foi um trabalho esmerado de ator.
Wuttke traduz em trejeitos, cacoetes e andar manco a personalidade esquizofrênica do mafioso criado por Bertold Brechet. Um texto interpretado em alemão, com tradução simultânea, e ainda assim o ator vence a barreira da língua para ter o público em suas mãos. Não foram poucas as gargalhadas em quase três horas de encenação.
A montagem de “Arturo Ui” por Heiner Müller é estupenda pela matéria-prima humana. Em cena, 22 atores tarimbados, de técnica apurada, com destaque para Hermann Beyer (Roma), Stefan Lisews ki (Dogsborough) e Michael Altmann (ator).
Espetáculo abençoa a imagem como ela é
São Paulo – “Uma contradição dialética, sem síntese”.
A frase que o Papa/Zé Celso diz no canto 2 dos seus “soluços” capta muito bem a alma deste artista seminal e controverso da cena teatral brasileira. Seu espetáculo mais recente, “Ela”, expõe um ator e encenador em plena forma, a sustentar sua arte no corpo quebradiço pelos 60 anos, humano que é, mas alicerce do Teatro Oficina.
Expõe não, escancara. É na porralouquice, na quebra de qualquer resquício de organização, de ordem, num alheamento ímpar, que a companhia Uzyna Uzona conspira para fazer valer a energia bruta da atuação. A marca dionisíaca, como em “Ham-let” ou “Bacantes”, está lá no “corredor” arquitetado por Lina Bo Bardi. Qual espetáculo deixaria o público esperando do lado de fora, cerca de 50 minutos, enquanto atores e cenógrafos estão a pendurar no teto do teatro os retratos gigantes de Cacilda Becker e João Paulo 20, ambos decorados com bexigas douradas, reluzentes? Claro, não há nada de vanguarda nisso. Ao contrário. Na estréia houve gente que até reclamou. Assim que abriram-se as portas, porém, o que importava então era a festa.
“Ela” começa, enfim. A sensação de faxina que a cenografia imprime condiz com a “limpeza”, o “enxugamento” do elenco. Não está em cena o jogo coletivo, a ocupação desesperada do espaço, mas a fluência requerida de cada um dos intérpretes. A exigência é maior.
José Celso Martinez Corrêa, Zé Celso, serviu de epicentro no mesmo dia em que seu personagem real beijava o solo do Rio de Janeiro. Sob o signo de Jean Genet, ou São Genet, dramaturgo francês morto em 1986 (“O Balcão”, “As Criadas”, “Pombas Fúnebres”), o ator surge vitalizado, senhor absoluto do espetáculo.
Em suas vestes papais, alvas; em sua máscara facial que equilibra a expansão de um Marcel Marceau (Bip) ou a introspecção de um Kazuo Ohno, Zé Celso canta, dança e domina o verbo com envolvimento. De onde quer que se sente, mesmo quando a visão é prejudicada pela estrutura da arquibancada, é impossível não prestar atenção nele.
O Mestre de Cerimônias (Marcelo Drummond) recepcina o Fotógrafo (Fransérgio Araújo) para tomar imagens do Papa (Zé Celso). Um Cardeal (Vadim Nikitin), um doidivanas, chega a ser confundido com Sua Excelência. Os quatros, sobretudo os três primeiros, estabelecem diálogos em que predomina o tom filosófico, existencial.
“Se são meus olhos, não será Ela. Se é Ela, não serão meus olhos”, divaga o Mestre de Cerimônias, numa performance segura de Drummond, um cecerone diante da platéia. “Só porque sou Papa não passo de pose?”, dispara Zé Papa, preocupado em encontrar um ângulo que o aproxime mais de Deus – de olho nos 15 milhões de “selvagens” que esperam pela graça dos santinhos. A imagem, Ela, só é atingida quando Zé Papa senta no penico. Mas “papa não tem c…”, desconsola-se.
As melhores passagens acontecem nos “soluços” divididos em cinco cantos. Os três declamados por Zé Papa destacam-se pela presença cativa do ator – movimentos leves, inclusive tocando ao piano, como num musical da Broadway nos anos 50.
Bastante oportuna a montagem. “Ela” destoa do coro hipócrita da Imprensa em torno do poder do Vaticano. “Ela” celebra Genet em seu corte mais uma vez profundo de um modelo hegemônico de sociedade que tanto desprezou em vida, sob a perspectiva do porão, do subsolo. “Ela” faz as pazes de Zé Celso com a cena aberta em grande estilo, com o público nas mãos, sem necessariamente tangenciá-lo.
“Ela” é o risco equilibrado de quem perscruta os assim chamados deuses do teatro. Atirando-se contra a falta de dinheiro, o desamparo do Estado. Aventurando-se na maravilhosa contribuição dos erros e acertos que fazem de cada apresentação uma experiência única. Nesse terreno, Zé Celso é a benção em pessoa.
Ela – De Jean Genet. Direção: José Celso Martinez Corrêa. Com Cia. Uzina Uzona. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 604-0678). R$ 20,00. Às quintas, todos pagam meia. No próximo, excepcionalmente, não haverá sessão. 90 minutos.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.