O Diário de Mogi
29.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 29 de março de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
Curitiba – É inerente da arte do teatro transcender ao espaço no qual ele acontece. Depois do último sinal, importa o “vôo” dos espectadores. E isto só se dá quando a magia é de grande monta. Como em “Divinas Palavras”, uma das melhores atrações do 7º Festival de Teatro de Curitiba – e que poderá ser vista em São Paulo de amanhã até o dia 9, em temporada gratuita no SESC Consolação.
O texto do dramaturgo espanhol Ramón Del Valle-Inclán (1866-1936) ganhou adaptação de dois compositores expressivos da música regional brasileira: Xangai e Elomar. O elenco, por sua vez, é formado por atores baianos. E a direção é da jovem alemã Nehle Franke. Essa mistura de raízes contribui para o caráter universal da obra, destacado com beleza e espanto em cena.
A partir do texto amargo de Valle-Ínclan, no qual cada ser humano parece predestinado à dor, porque amor de perdição é armadilha e partilha de herança é ambição desmesurada, capaz de desgraçar toda uma família, enfim, a partir desse olhar impiedoso do autor, a montagem encontra a si mesma, incorporando seu filete de humor em pleno ritual.
“Divinas Palavras” tem o aleijadinho Laureano (Fábio Vidal) no centro da disputa dos tios. Ou melhor, nem tanto ele, Laureano, um “fardo” a grunir boa parte do tempo. O que se disputa, cruelmente, é o carrinho de mão, o “berço” no qual o pobre coitado é levado para cima e para baixo.
O nonsense em torno da herança culmina na morte do aleijadinho, na interpretação ao mesmo tempo assustadora e encantadora de Vidal, traduzindo em desespero e ódio cada músculo retesado do corpo, mais o olhar esbugalhado, a voz esgarniçante. Em estando morto, Laureano não perde a condição de “moeda”.
“Três dias na porta da igreja rendem mais do que o dinheiro do enterro”, dispara a garota Simoniña (Cibele de Sá), carregando ligeiro o falecido no carrinho para esmolar. A miséria em seu grau mais elevado; a exploração não cessa nem depois do último respiro.
A peça confronta ainda a noção de pecado com a traição de Mari-Gaila (Andréia Elia). Depois de conseguir parte da “herança”, ela se deixa seduzir pelo saltimbanco Sétimo Miau (caco Monteiro) e trai o seu marido, o sacristão da aldeia. Como Madalena, Mari-Gaila é perseguida pela comunidade e o espetáculo termina com a frase bíblica, desafiando àquele que não cometeu pecado a atirar a primeira pedra.
“Divinas Palavras” é um espetáculo que comove pela sua sinceridade. Há uma riqueza corporal, uma inventividade constante que brota do corpo dos atores. Como nos personagens construídos por Elydia Freire (Poca Pena) e Evelyn Buchegger (Marica del Reino), em que a caracterização é minuciosa, de conteúdo ancestral, antropológico.
Tal perfil também se enquadra nos figurinos e adereços de Moacyr Gramacho, nos bonecos de Olga Gomez e na cenografia de Ayrson Heráclito e Haroldo Garay, que integra a tudo e a todos com fluência rara.
A platéia giratória conduz o olhar do espectador como uma câmara cinematográfica. Numa das sequências mais impressionantes, o giro acompanha um grupo que persegue Mari-Gaila por entre as cercas. A rusticidade do espaço, com vários ambientes – ora uma tenda, ora um descampado, por exemplo – alcança também a expressão oral. As falas pertencem à tradição de quem vive nos confins dos sertões, com seus códigos específicos, na maioria das vezes evocando a natureza. Daí, a remissão imediata à peça-irmã “Vau da Sarapalha”, do grupo paraibano Piollin, baseada na obra homônima de Guimarães Rosa.
Xangai, Elomar, Nehle Franke e os vibrantes atores baianos captaram de Valle-Inclán a universalidade pungente. É um espetáculo que coliga o sofrimento brasileiro, de ontem e de hoje, com o sofrimento de vários povos. O choro da sanfona e o cantochão da cantora que costura as cenas representam o lamento de uma humanidade que beija o rosto da morte ao mesmo tempo em que foge dela. Os artifícios para viver são muitos. “Divinas Palavras” não prega juízo de valores, não quer transmitir mensagens. Faz, de bom tamanho, o seu recorte lírico e cruel da pequenez que habita os corações dos mortos-vivos que perambulam por aí, Brasil adentro.
Divinas Palavras – De Ramón del Valle-Inclán. Tradução: Carlos Roberto Franke. Adaptação: Elomar e Xangai. Direção: Nehle Franke. Com Ana Paula Bouzas, Caica Alves, Katia Leal, Rino de Carvalho Inácio e outros. Estréia amanhã, 21h. Terça a sábado, 21h; domingo, 19h. Sesc Consolação/Salão Verde (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2322). 90 lugares. Grátis (retirar convites com antecedência). Até 9 de abril.
Matheus acentua humor em “Orgulho”
Curitiba – Como em “Deadly”, apresentada no ano passado, a Cia. do Circo Mínimo – leia-se Rodrigo Matheus – voltou ao Festival de Teatro de Curitiba com um espetáculo no qual o ator passa boa parte do tempo suspenso no ar. Matheus segue na sua pesquisa do espaço aéreo, que vem desde “Prometeu Acorrentado”, cerca de dois anos atrás. Agora, é a vez de “Orgulho”, dividindo a cena com o músico e ator Thibaut Delor.
E a presença deste, aliás, o diferencial em relação às montagens anteriores. A presença de Delor coincide com maior espaço para o humor. Em “Orgulho”, aquela densidade recorrente do drama e da tragédia cedem espaço para o lúdico, sob direção de Cala Candioto.
Matheus surpreende ao explorar sua veia cômica, brincando com o ego inflado do seu personagem. A caricatura gay é o ápice da ruptura que o ator insinua em seu novo trabalho.
O texto de “Orgulho” tem como eixo o conto homônimo de Rubem Fonseca. A impotência do homem diante de Deus – este sim, onipotente, como quer seus seguidores – espelha o esforço do trapezista na missão de alcançar o status de herói.
Enquanto ele (Matheus) mostra seu virtuosismo no ar, retorcendo músculos aqui e ali, com muito suor, o violoncelista (Delor) e seu inseparável instrumento servem como contraponto. A coreografia assinada por Sandro Borelli faz uso sobretudo do contato improvisado entre os corpos. A música que ecoa das cordas, ao vivo, constitui ela também um elemento da narração.
Muito mais do que um retrato da ambição humana diante da construção do mito, do herói -cita-se, por exemplo, a carta de Getúlio Vargas que “saiu da vida para entrar para a história” – o que se destaca em “Orguho” são os seus momentos cômicos.
Neles, a interpretação combina com o espaço e dinamiza a relação com o público. Um caminho que Rodrigo Matheus e sua Cia. Circo Mínimo já provaram que têm cacife para investir muito mais.
Fringe veio para ficar, garante diretor
São Paulo – Num balanço prévio da 7ª edição do Festivai de Teatro de Curitiba (FTC), o diretor de comunicação, Leandro Knopfholz, 24 anos, avalia positivamente os resultados da primeira mostra paralela. O Fringe, como foi batizada a mostra, inspirada no Festival de Edimburgo (Inglaterra), reuniu 32 peças e teve desde platéia reduzida a três, quatro pessoas, até casas lotadas (40, 50 pessoas). Ou seja, a freqüência do público reflete a própria diversidade do painel que foi apresentado (leia na página 3 a crítica de alguns espetáculos acompanhados por O Diário).
“O Fringe veio para ficar”, garante Knopfholz. Ele destaca principalmente o empenho dos próprios grupos em cuidar das apresentações com esmero – alguns chegando a produzir programas de invejar os participantes da mostra oficial. Com uma taxa de R$ 50,00, os grupos interessados tiveram direito ao teatro e à divulgação da montagem.
A partir do próximo ano, o diretor quer ampliar a faixa do horário alternativo (sessões às 18h e 24h) para o período da manhã. A intenção é descongestionar as noites, que registraram quatro espetáculos seguidos, entre mostra oficial e paralela. O diretor estima que, em seus 11 dias, o festival atraiu um público de cerca de 60 mil pessoas.
Knopffiolz concorda que foi um equívoco a apresentação de “Arlechino, Servidor de Dois Patrões”, pela Cia. Teatro Di Stravaganza (RS), na abertura do festival deste ano, “O talento da companhia é inegável, tanto que foi selecionada para a mostra oficial.
Mas o espaço não foi adequado”, reconhece o diretor. Na sua opinião, para uma peça funcionar na Ópera de Arame é necessário que utilize muitos recursos visuais e seja expansiva. “Arlechino”, ao contrário, era intimista e foi diminuída pelo gigantismo do espaço.
Para o próximo ano, a única certeza é a inclusão de mais uma atração internacional na programação. “Agulhas e Opio” (Needles and Opium), que introduziu o teatro do diretor canadense Robert Lepage no Brasil, foi uma das grandes sensações do festival.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.