O Diário de Mogi
8.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 08 de março de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Espanta a avalanche de denúncias estampadas ultimamente em manchetes. São proporcionais à impunidade. O Brasil está repleto de casos insolúveis – de Brasília aos “brasis”. Essa overdose de falcatruas poderia até depor contra a peça “Caixa 2”. Por um momento, o espectador, entuchado da realidade política, não agüenta mais falar de Collor, CPI dos precatórios, enfim, dessa ciranda que não dá em nada. Mas estamos numa comédia de Juca de Oliveira, com um bom elenco, estrelado pelo próprio e por Fúlvio Stefanini e Cláudia Mello. E aí, não tem jeito: o talento reina absoluto.
Juca de Oliveira foi buscar em outra peça sua, “Motel Paradiso”, nos anos 80, a inspiração para retomar a comédia de fundo político-social. Espécie de raio-X do País, “Caixa 2” vai além da perspectiva história em que vivemos. Oliveira constrói personagens que têm carisma, densidade psicológica, se sustentam por si só. A despeito da concretude dos mecanismos bancários, financeiros, a peça diz a que veio com os sonhos frustrados, os ideais vendidos, a sem-cerimônia de quem dá as cartas no jogo do poder.
O empresário Luiz Fernando (Juca de Oliveira) e o gerente Roberto (Fulvio Stefanini) possuem caráter distintos. O primeiro é movido pelo vil metal. Pouco lhe importa o outro. Quer o lucro, a vantagem a qualquer custo. Roberto, não. Ele acredita na dignidade do trabaiho, veste a camisa da empresa, faz o seu arroz-com-feijão e se dá por feliz – até ser despedido depois de 22 anos de suor.
Nessa gangorra entre bem e mal, “Caixa 2” perfila, aos poucos, os demais tipos da história. Cláudia Mello é a mulher de Roberto. Aliás, é a “mulher” da peça. Cabe a ela furar o bloqueio masculino do mundo dos negócios e ditar as regras – “O dinheiro é meu!”, brada a certa altura. Depois vem o seu filho (Petrônio Gontijo), que também joga no seu time para driblar os vilões. E tem ainda o assessor não menos inescrupuloso do empresário (Cassiano Ricardo) e a secretária do patrão (Suzy Rêgo).
O corre-corre é por conta dos R$ 10 milhões que o empresário captou em suas negociatas (o manjado caixa dois). Para se desviar dos olhos da Justiça, ele deposita o dinheiro na conta da sua secretária, depois de também lhe prometer algum. O azar é que o dinheiro vai parar na conta corrente negativa da mulher de Roberto, então despedido pelo mesmo Luiz Fernando.
Na tentativa de reaver sua pequena fortuna, o empresário tenta subornar Deus e o mundo. Mas a família de Roberto, tipo classe média baixa, não arreda pé. Só devolve o dinheiro se o ex-patrão deixar pelo menos 40%. Como pano de fundo, surgem os pequenos dramas pessoais.
É uma comédia de atores. Fulvio Stefanini faz um Roberto típico das comédias italianas -felliniano até. Já virou marco da temporada a cena em que o personagem refastela-se na poltrona e, ainda assim, sem ação alguma, sem dar um pio, faz a platéia gargalhar. Sua expressão sempre dissimulada, como se a história não fosse com ele, lhe garante a empatia.
O empresário de Juca de Oliveira também é de um sarcasmo atroz com suas sentenças lapidares, tais como: “Se a Justiça não autorizar a minha candidatura, só me restam a Casa Branca ou a casa de Collor em Miami” e “Ninguém vai preso neste País por dinheiro”. É histriônico na medida certa.
Comediante nata, Cláudia Mello desfila à vontade no palco. Vai à forra na condução dos seus homens – marido e filho. Petrônio Gontijo, Suzy Rêgo e Cassiano Ricardo completam um time coeso, onde todos têm espaço para fazer valer seu dote de bom intérprete.
E são eles, os atores, que o diretor Fauzi Arap mais uma vez privilegia em cena. Em cartaz também com “Santidade”, ele tem pleno domínio ao tratar o drama ou a comédia com isenção incomum. Arap tem o mérito de diluir a figura do diretor, de se “esconder” no palco, para deixar vir à luz o teatro em sua essência. É uma virtude dos grandes homens do teatro.
Mais simples e funcionais ainda, em se tratando de um espetáculo nos moldes do chamado “teatrão”, são os cenários e os figurinos de Márcio Medina. A cenografia, junto com a iluminação de Laura Figueiredo e Arap solucionam o espaço cênico – a divisão do escritório e da casa – com um tratamento perfeito. Não há o blecaute constante, mas uma exigente e perfeita simultaneidade de cena.
Na sua perspectiva às vezes ingênua, às vezes contundente, sem nunca perder o fio do humor desbragado, sem culpa e sem medo de ser feliz, cutucando os donos do poder que constroem prédios como castelo de areia. “Caixa 2” resulta num dos melhores momentos da comédia brasileira nos anos 90.
Caixa 2 – De Juca de Oliveira. Direação: Fauzi Arap. Com Oliveira, Fulvio Stefanini, Suzy Rêgo, Cassiano Ricardo, Petrônio Gontijo e Cláudia Mello. Quinta, 21h; sexta, 21h30; sábado, 20h e 22h; domingo, 19h. Teatro Jardel Filho (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 884, Bela Vista, tel. 605-8433 ou 607-3364). R$ 20,00 (quinta), R$ 25,00 (sexta e domingo) e R$ 30,00 (sábado). Duração: 90 minutos. Temporada por tempo indeterminado.
“Espumas Flutuantes” voa, mas não consegue achar equilíbrio
São Paulo – O retrato de Castro Alves, quando jovem, lembra o de Oscar Wilde. Mas as semelhanças podem ser mais profundas. Tal qual o dândi inglês, o escritor baiano também fez da sua existência uma eferveção poética literal. Suas inquietações estimularam muitos corações e mentes – da época e de hoje. O musical “Espumas Flutuantes – O Vôo do Gênio” vai de encontro ao espírito libertário desse homem que viveu no século passado e continua fazendo suas palavras se apoderarem dos nossos sentidos com intensidade incomum.
Musical talvez não seja a definição correta. Um recital, quem sabe. O certo é que a montagem moldura o verbo com tanto esmero que a poesia de Castro Alves chega estalando, fluindo na boca e nos corpos libidinosos do elenco. O lirismo é tocante.
Francamente aberto à infinita contribuição das sensações humanas – leia-se Dionísio até à medula -, o espetáculo é visionário na medida em que pode. Ou seja, transcendendo aos limites do palco e, paradoxalmente, se perdendo nas várias possibilidades que isso implica.
Os 13 poemas extraídos do único livro publicado em vida, “Espumas Flutuantes”, são cantados e interpretados com pungência. Há momentos brilhantes, como nas cenas iniciais, quando o elenco é um cardume em dispersão, uniformizando seus contrastes, jogando com o público, incitado-o a digerir a poesia como se fosse o mel que desce macio pela garganta.
Mas o espetáculo desanda depois. Estreou sem estar pronto. Falta-lhe o ritmo. Os altos e baixos ainda são gritantes, inclusive entre os atores. Escorregões na fala, na sonoplastia, na iluminação, enfim, minam aos poucos a beleza cênica que se tenta construir.
A vantagem do ator e diretor Pascoal da Conceição, presença ativa nas peças de José Celso Martinez e seu grupo Uzyna Uzona, é de que “Espumas Flutuantes”, o espetáculo, já encontrou sua razão de ser. A narrativa que entremea dramatizações, por exemplo, funciona sem nenhum prejuízo. Ao contrário, os quadros seguem uma coerência autobiográfica.
Há a liberdade para o vôo, que passa pela percussão musical (Luiz Gayotto), em simbiose com os objetos de cena – e de platéia -; passa pelos figurinos criativos e bem desenhados (Val Barreto); passa pela evocação feminina de Elis e Janis (aliás, ressalta-se a força conjunta das sete mulheres do elenco); passa pela celebração do espaço e do corpo que nele atua. O rito está garantido. E, com ele, a poesia das palavras, que insistem: “Como um pássaro, o coração do morto volta para o ninho”.
O problema da montagem é de ordem puramente técnica. De outro modo, é difícil entender por quê tanta energia é empregada em vão. Já que se chegou à cristalização dramática da poesia de Castro Alves, seria o caso de se voltar, agora, para as arestas que estão aí, por vezes expostas grosseiramente. Às vezes, é preciso ter os pés no chão para voar.
Espumas Flutuantes – De Castro Alves. Roteiro e direção: Pascoal da Conceição. Com Monica Henriques, Dulcinéia Dibo, Vanessa Frigo, Daniela Jaime-Smith, Lucia Helena Gayotto, Fabiana Serroni, Ronaldo Silva e Paula Kill. Terças, 20h30. Teatro Bibi Ferreira (avenida Brigadeiro Luis Antônio, 931, Bela Vista, tel. 605-3129). R$ 25,00. Duração: 80 minutos. Até maio.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.