O Diário de Mogi
10.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 10 de maio de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Depois de romper a parceria de dez anos com Antunes Filho, no final do ano passado, J. C. Serroni, 47 anos,começou a tirar da prancheta seu sonho recorrente em 21 anos de palco: o Espaço Cenográfico.
Há três meses ele encontrou uma pizzaria abandonada anexa ao Teatro Eugênio Kusnet, a poucas quadras do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), no Sesc Consolação; investiu R$ 31 mil do próprio bolso para reformas no prédio; e inaugurou na última terça-feira o seu laboratório permanente de cenografia, figurino, arquitetura teatral e outros elementos visuais. “Poucas pessoas no Brasil estão dispostas a fazer o que estou fazendo”, afirma Serroni a O Diário. “E faço não por mim, mas pela cenografia brasileira.” A seguir, os principais trechos da sua entrevista.
Diário – Por que deixou o CPT?
J. C. Serroni – Coincidiu, no ano passado, com a volta do Antunes para o seu método de ator. Eu não queria parar como meu trabalho de cenografia e já havia experimentado muita coisa lá com ele. Claro, poderia experimentar mais. Mas com minha bagagem toda, achava que para a cenografia eu tinha que fazer uma coisa mais individual. Se o Antunes está voltando para o trabalho fechado de ator, eu queria voltar para o designer, para a cenografia. Então, resolvi me afastar.
Diário – No programa de “Prét-à-Porter”, o novo espetáculo de Antunes, ele afirma que acabou a fase de “diretor de designer”. O que acha dessa definição?
Serroni – Eu não sei… O Antunes sempre foi muito inquieto. Em todo esse tempo que estive lá, ele sempre se preocupou muito com o trabalho do ator. Aí ele radicalizou mesmo. Antunes queria fechar seu método, um projeto que vem desde antes do CPT. A voz, o corpo, essa coisa toda… Não que eu queira fazer designer, decoração… Vou estar sempre preocupado com o ator também, uma coisa que aprendi com o Antunes. Só que existe também um outro mundo: a cenotécnica, o figurino, a arquitetura teatral. A minha formação é essa. Se eu deixar de fazer isso, que é o que sei fazer – dar aula de cenografia, fazer arquitetura de teatro, criar cenário, figurino -, vou entrar em conflito comigo.
Diário – “Prét-à-Porter” fez uma “faxina” na cenografia. Você se imagina trabalhando assim com Antunes?
Serroni – E não foi só na ceriografia. Radicalizou na iluminaçao, no som, no figurino e, segundo li, o Antunes radicalizou até com o trabalho dele para ficar mais distante, dar liberdade. Eu podia até continuar no CPT, de uma outra forma, mas não seria coerente. Lá é uma coisa do Antunes. A cenografia lá dentro vai ser sempre uma parte do todo. Eu preciso que a cenografia seja o todo. Neste momento, estou com a cabeça aqui no Espaço Cenográfico, esqueci um pouco o CPT. Mas continuo torcendo por ele, que afinal é o grande centro de pesquisa teatral no país.
Diário – Quando participou pela primeira vez da Quadrienal de Cenografia de Praga (87), você declarou que o Brasil estava pelo menos 20 anos atrasados. Evoluímos?
Serroni – A gente cresceu muito. Principalmente em relação à luz e à arquitetura teatral. Hoje, está se dando muita importância aos projetos de construção. Acabamos de ganhar três ótimos teatros: o Sesc Vila Mariana, o Alfa Real e o São Pedro, que foi reformado. E todos tiveram assessoria cênica.
Diário – Pode-se falar em uma linguagem cenográfica brasileira?
Serroni – O que a gente ouve fora do país é que a nossa cenografia tem muita liberdade, é sempre meio festiva. Cada espetáculo, cada autor traz um olhar diferente. Não é o caso da cenografia alemã, por exemplo, que tem uma linguagem muito fechada, ainda que boa; mas tudo é muito estanque. A brasileira não. Duas horas antes da estréia, o cenógrafo está lá mexendo. Nosso trabalho é mais vivo. Também somos elogiados pelo uso de materiais simples, como jornal, sucata, sobra de cenários; a gente transforma muita coisa. Claro que o Brasil é enorme para se falar em uma linguagem brasileira. Mas, pelo que se vê em São Paulo, Rio, Recife ou João Pessoa, por exemplo, nosso palco não tem grandes maquinismos, aquela coisa pesada.
Diário – Quais são as especificidades do seu trabalho?
Serroni – Eu sempre fui um cenógrafo preocupado com a infra-estrutura para a cenografia, para a iluminação, para o espaço teatral. Me preocupo muito com a formação, com a mão de obra. Mas o centro é a experimentação. O Espaço Cenográfico vem preencher isso: um lugar para juntar as pessoas na descoberta de formas, materiais e novos caminhos para as artes cênicas. Uma das metas iniciais, por exemplo, é agregar mais a iluminação à cenografia. Há uma certa distância entre os profissionais. Ainda encaramos a luz só como iluminação e não como espaço, o que já ocorre em outros países.
Diário – Você já cria figurinos e agora acena com a luz. Seria o caso de uma cenografia total?
Serroni – O ideal era que o cenógrafo fosse considerado um diretor de arte, coordenando toda a parte visual (cenografia, iluminação, figurino, maquiagem). Mas no teatro isso é muito difícil. A dez, 15 dias da estréia, não dá para você se dividir em quatro. Se o cenógrafo fizesse também pelo menos a iluminação, já seria muito bom. Mas a maioria pende mais para a criação de figurinos.
Diário – O próximo passo, então, é dirigir?
Serroni – Bem, pode ser um projeto para a quarta década da minha carreira [risos]. Eu tenho vontade, mas não quero ser apenas diretor de espetáculo. Seria fácil. Aprendi muito com o Antunes sobre a direção de atores e quero usar isso um dia.
Espaço Cenográfico tem caráter público (rua Teodoro Baima, 88, Centro, tel. 257-1115 ou 256-4619). Coordenação: J.C. Serroni. Curso – De agosto a dezembro, das 19h às 22h. Vagas: 15. Inscrições a partir de 1º de junho. Taxa: R$ 5,00 (mensalidade gratuita). Biblioteca – De terça a quinta, das 16h às 20h; sábado, das 14h às 18h. Exposição – Visitas aos sábados, das 14h às 18h.
Espaço Cenográfico tem caráter público
São Paulo – “É como um videotape: vai para frente e para trás, vocês é quem mandam.” Na introdução para a platéia, o encenador Augusto Boal faz a ponte do seu “teatro fórum” com o efeito “você decide” que toma a televisão de assalto. De certa forma, o encenador antecipou tudo isso.
Mas, ao contrário da participação virtual pelos “0900” da vida, aqui o espectador intervém de fato. Entra em cena na hora que quiser, substitui o ator em questão e representa como acredita que faria na vida como ela é.
Segmento do “teatro do oprimido” gestado pelo diretor carioca nos anos 70, o “teatro fórum” se distingue também por oferecer mais de duas opções. Se nove pessoas da platéia discordam da ação do personagem, então elas ganham vez e voz no palco.
Foi o que Boal mostrou no início da semana em São Paulo. Ele encerrou seu workshop de cinco dias no Teatro da USP com duas apresentações. Os 27 participantes criaram quatro cenas curtas abordando educação, violência urbana, solidão no meio do público e o padecimento de uma estrela clonada de Carla Perez, vítima da “ditadura do corpo”.
A platéia escolheu os temas educação e violência para intervir. Na primeira cena, o diretor de escola cobra da professora maior rigor na sala de aula e cumprimento do método clássico de ensino. Na segunda, dois meninos de rua praticam roubo e estupro de pessoas da classe média que, antes, tinham consciência social quanto aos excluídos.
O “teatro fórum” requer mínimos recursos,. O realismo predominou nas apresentações – sem cenário, iluminação, sonoplastia e tampouco grandes atuações.
Como Zé Celso, Boal gesticula muito, chega a “interpretar” para se fazer entender, conquistando a empatia da platéia. “O teatro do oprimido propõe várias portas em que todo mundo é artista, queira ou não queira”, continua explicando. “A gente pode, no presente, pensar o passado e inventar o futuro.”
Augusto Boal cria seu “você decide” de fato
São Paulo – Para uma cidade que não possui curso superior de cenografia – no Rio existem dois -, a Capital e as cidades vizinhas vêem no Espaço Cenográfico um alento que faz par com o CPT. Só que a iniciativa de J.C. Serroni tem um caráter mais institucional coordenado por Antunes Filho, no Sesc Consolação.
De olho nos profissionais da área e nos jovens que manifestam, no mínimo, curiosidade sobre o mundo da cenografia, o Espaço vai oferecer cursos, exibir vídeos e permitir acesso a uma biblioteca com 500 títulos, entre livros e revistas especializadas, nacionais e importadas.
O folheto mensal “Espaço Cenográfico News”, com tiragem de 2 mil exemplares, distribuído gratuitamente, vai preencher um pouco do vácuo editorial com informações sobre cenografia. Cada edição trará, por exemplo, o “cenógrafo do mês”. O primeiro perfil é de Tomás Santa Rosa Júnior, ou Santa Rosa. Ele assinou o “Vestido de Noiva”, de Ziembinski, em 1943, marco do moderno teatro brasileiro.
Uma exposição cenográfica vai ocupar permanentemente um dos corredores. Serroni dá a largada, mas depois abre para outros cenógrafos. As paredes do Espaço apresentam texturas, adereços e objetos suspensos oriundos das montagens que ele participou – dos 70 espetáculos do currículo, 11 foram no CPT.
A intenção, diz o cenógrafo, é situar o público – visitantes, alunos – num ambiente “vivo”, com direito a iluminação e sonoplastia, como se todos estivessem sobre um palco.
Também está programado um ciclo de palestras no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, ao lado do Espaço.
LIVRO
J. C. Serrom também escreve livros. Para o segundo semestre, ele prepara “História Visual da Cenografia Brasileira”, um projeto da Funarte. Também dispõe de material suficiente para produzir uma história da cenografia nacional mais acalentada, idéia a ser apresentada em breve para alguma editora.
Paralelo aos livros e, agora, ao Espaço Cenográfico, ele continua fazendo o que mais gosta: criar cenários e figurinos. Dois espetáculos infantis em cartaz levam sua assinatura: “Chimbirons e Chimbirins” e “No Reino das Águas Claras”. Daqui a duas semanas reestréia o infanto-juvenil “O Homem das Galochas”.
E os convites, depois da saída do CPT, não param de chegar. Tem Ulysses Cruz com “Sábado, Domingo e Segunda”, do italiano Eduardo de Filippo. Vladimir Capella com “Clarão nas Estrelas”, do próprio, para o Teatro do Sesi. José Possí Neto com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do português José Saramago, no Rio. Para o ano que vem, Fauzi Arap com “Gota D’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque, estrelado por Bibi Ferreira.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.