O Diário de Mogi
24.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 24 de maio de 1998. Caderno A – 4
Primeira montagem do texto de Tchecov prima por direção equilibrada e boas atuações
VALMIR SANTOS
São Paulo – Mesquinhez e idiossincrasias à parte, o tédio desenha a sombra dos personagens de “Ivanov”. O sentimento é citado pelo menos sete vezes no espetáculo traduzido e dirigido por. Eduardo Tolentino de Araújo, com o grupo Tapa.
Um século atrás, o autor russo Anton Tchecov já diagnosticava o enfado subliminar no universo dos negócios e da família. É paradoxal que, às portas do terceiro milênio, o poder segue espelhando a falência humana. Constata-se: não há avanço
tecnológico para o tédio.
Ivanov é um ser completamente ilhado em si. “Viver para mim é uma tortura”, resume. O fazendeiro vai à bancarrota e, a reboque, questiona a relação com a mulher Anna, que é judia. Casou-se mais em função de um dote de família – que nunca veio – do que por amor. Não admite, mas é o que Anna lhe joga na cara.
Em plena crise, o “homem bom, mas tão infeliz” experimenta uma nesga de vida. A jovem e bela Sacha o seduz. Num primeiro momento, ele resiste. Não crê que o destino lhe conceba tal alegria à beira do abismo. Sacha, no entanto, o envolve de tal maneira que catalisa sua paixão.
Foi a gota d’água para Anna. Ela se convalesce na cama e como que culpa Ivanov pela iminência da morte. Culpa capitalizada pelo médico Lvov, racional até a medula: “Você está matando sua mulher”, sentencia. Foi a pá de cal para m Ivanov prostrado com as “cruzes” sobre os ombros.
O drama de Tchecov é tido como uma das peças menores, se comparada a “O Jardim das Cerejeiras”, “As Três Irmãs”. A montagem do Tapa é a primeira do texto de que se tem notícia no Brasil.
Só úm grupo com a estabilidade do Tapa poderia trazer “Ivanov” à cena com rigor e inventividade. Tolentino passou cerca de sete anos trabalhando na tradução, entre um projeto e outro. Esmerou-se tanto na palavra quanto na concepção e direção do espetáculo.
É preciosa a sua ênfase equilibrada na comicidade que perpassa a história. O elenco, de entrega e disciplina incomuns, é o grande responsável. Genézio de Barros (Pavel Lebedev), em especial, tem o público nas mãos com seu beberrão patético, no qual despreza o tipo fácil, de gestos trêmulos ou andar balança-mas-não-cai. Barros encontra o eixo até quando seu personagem surge como interlocutor do melancólico Ivanov.
Outros coadjuvantes emprestam brilho e leveza ao drama. O pão-durismo de Zinaida (Elizabeth Gasper), o riso hebeniano de Marfa (Cristina Cascioli), as fanfarronices de Chabelski (Milton Andrade) Kossykh, (Chico Martins), Borkine (Riba Carlovitch), Gavrila (Candido Lima) e Avdotia (Sonia Oiticica), enfim, compõem um paralelo bem estruturado à densidade do drama.
Coube a Zécarlos de Andrade (Ivanov), Denise Weinberg (Anna) e Brial Penido (Lvov), contrabalanceados pela vivacidade de Carla Carvalho (Sacha), a cumplicidade com a tensão do texto. São papéis estratégicos e bem defendidos.
Andrade passa praticamente todo o espetáculo com o corpo arqueado, olhar distante, transmitindo a alma perturbada de Ivanov. Suas reações são contidas, duras, quer diante da exuberante Sacha, quer na hora em que decide pôr fim à vida.
Denise expõe uma Anna insegura e não menos perdida do que Ivanov. São aparições curtas, mas repletas de emoção. A atriz espelha no rosto a dor da perda do marido que mentiu ao jurar amor e da vida que se esvai por causa da doença.
Penido faz jus à figura mais energética da peça. O médico Lvov é de uma correção política atroz. Seu discurso asséptico privilegia a razão e o próprio umbigo. Em nome da ordem e da moral, atropela quem lhe cruza o caminho. A postura corporal de Penido, ao contrário de Andrade, é ereta, as custas do poder do conhecimento.
Clara simboliza com sua Sacha o único feixe de luz, de esperança. Não é à toa que passeia pelo palco com seu vestido branco, em boa parte do espetáculo. A atriz dá conta da delicadeza e determinação da personagem.
O diretor Tolentino, como se disse, não prima apenas pelo cuidado com o verbo. “Ivanov” tem um acabamento visual que harmoniza perfeitamente com o texto. A cena da festa, em que cerca de 13 personagens estão em semicírculos para a caixinha de presente que solta fogos de artifício, traduz a “limpeza” do cenário (Renato Scripilliti) dos figurinos (lola Tolentino), da iluminação (Guilherme Bonfanti) e da própria direção dos atores. É um instante mágico, em suma.
A maturidade do Tapa não vem de agora. Há cerca de dois anos, por exemplo, sua versão para “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, fez páreo com a histórica montagem de Ziembinski (43). “Ivanov”, enfim, é um exercício de elegância da arte teatra1, em que pese o tédio dos dias que correm.
Ivanov – De Anton Tchecov. Tradução e direção: Eduardo Tolentino de Araújo. Com Grupo Tapa (André Garolli, Inês de Carvalho, Paulo Marcos, Sandra Corveloni, Tony Giusti e outros). Quinta a sábado, 21h, domingo, 18h. Teatro Aliança Francesa (rua General Jardim, 182, Vila Buarque, tel. 259-0086). Estacionamento com desconto em frente ao teatro. Duração: 135 minutos.
“Tio Vânia” também execra “vida besta”
São Paulo – Outra boa montagem de Tchecov está em cartaz na Capital. Estrelada por Renato Borghi, “Tio Vânia” (1897) foi escrita um ano antes de “Ivanov” e também apresenta o enfastio pela vida que, aliás, caracteriza muitos personagens do dramaturgo russo (Treplev e Nina, em “A Gaivota”, não são diferentes). |
O Tio Vânia interpretado por Borghi é quem se vitimiza mais pela “vida murcha” em que está metido. “Pelo jeito, tédio e preguiça pegam”, afirma a certa altura, em um dos muitos lampejos de sarcasmo e ironia que pontuam o texto.
Há também o médico, Dr. Astrov (Luciano Chirolli), outra figura recorrente nas obras de Tchecov – ele que, em vida, também abraçou a medicina. E aqui, o conteúdo autobiográfico, ao que parece, é acentuado.
Espécie de alter-ego do escritor, Astrov reverbera a consciência humanista, verdadeiro poço de indignação que é (há um século, já saía em defesa da ecologia).
Cansado da “vidinha” que leva, reclamando do tempo “besta” que perdeu e decepcionado com a “decadência da civilização”, o médico é a melhor tradução do mal-estar do século passado, que se repete agora nesse fim de milênio.
Mas, em “Tio Vânia”, os personagens não passam pela vida somente “em férias”. As perturbações da alma e do espírito também emprestam seu quinhão de água ao moinho que move corações e mentes.
Na órbita de Tio Vânia, flutuam seu objeto do desejo, Yelena (Marina Lima), e sua âncora para a existência, a sobrinha Sônia (Leona Cavalli). Durante anos ele cuidou dos negócios do cunhado Serebriakov (Wolney de Assis), professor universitário aposentado e decadente, que foi casado com sua irmã, falecida, e hoje está nos braços da bela Yelena.
Farto de tanta submissão, Tio Vânia se rebela contra o cunhado e passa sua vida a limpo. Ao ponto da loucura, provoca um fuzuê no solar de Serebriakov, com direito a disparo de espingarda – lamenta não ter acertado nenhum tiro no alvo preterido, o cunhado. É a deixa pastelão, por assim dizer, para um drama de vasta matéria-prima.
A montagem, ao contrário de recente versão para o cinema, acerta em não investir tanto nesta sequência. Prefere distribuir o humor corrosivo nos devaneios de Tio Vânia e do amigo e fazendeiro decadente Tielhêguim (Abrahão Farc), ambos emanando forte carisma.
Borghi, com seus 40 anos de palco, e Farc são presenças marcantes. Ainda que o primeiro repise a matriz vocal e gestual de papéis anteriores (seu Tio Vânia, notadamente, lembra muito o recente e não menos delirante Galileu),o que sobressai é a voz e o corpo da experiência de quem parece brincar o tempo todo no espetáculo com as noções de tempo e espaço.
O médico de Chirolli não fica atrás. O ator dá consistência à utopia de Astrov, mesmo quando esta desmorona diante dos olhos do espectador. Há um equilíbrio entre distanciamento e aproximação. Quando desdenha o amor de Sônia, ou quando reaviva a chama amorosa diante de Yelena, são momentos distintos, mas ligados por um fio do homem que enxerga além mas se encontra em busca de um sentido para a vida.
Mariana Lima (Yelena) e Leona Cavalli (Sônia) complementam seus extremos de mulher com força e delicadeza. São personagens que anulam os conceitos exteriores de beleza para unirem-se na essência do que são; a cumplicidade feminina é um alento no reino tchecoviano da desesperança. As atrizes perscrutam a dor de amar e de viver com magnetismo.
Vindo de atuações e, recentemente, experimentando a direção no grupo Teatro Promíscuo, o jovem mogiano Élcio Nogueira vai, aos poucos, dominando o ofício. Aqui, ele dispensa o formol e opta pela aproximação do público.
Peca, porém, ao forçar a “carnavalização”, prejudicando o ritmo em certos momentos. “Tio Vânia” já possui seu conteúdo anárquico – aliás, paradoxalmente, bem explorado no espetáculo.
Tio Vânia – De Anton Tchecov. Direção: Élcio Nogueira. Com TeatroPromíscuo (Geisa Gama), Jolanda Gentilezza e outros). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brasileiro de Cómedia – Sala TBC (rua major Diogo, 315, Bela Vista, tel. 3106-4408). R$ 12,00. Duração: 120 minutos. Até 2 de agosto.
Tchecov é montado no Rio e SP
São Paulo – Em tese, não há motivos para efemérides. Anton Tchecov nasceu em 1904. Mas vive-se um “boom” de montagem das peças do dramaturgo russo. “Ivanov”, com o grupo Tapa, e “Tio Vânia”, estrelada por Borghi, já estão em cartaz. Mas vem mais por aí, na temporada carioca.
“Jardim das Cerejeiras”, dirigida por Cláudio Mamberti, deve estrear no Rio ainda este mês. Em outubro, é a vez de dupla versão de “As Três em Irmãs”, com respectivas direções de Enrique Díaz e Bia Lessa.
Se se quiser encontrar uma razão para a evocação de Tchecov, pode-se lembrar que foi em 1898 que o Teatro Artístico de Moscou, o lendário TAM, então dirigido por Constantin Stanislavski, levou à cena “A Gaivota” (1896) pela primeira vez.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.