O Diário de Mogi
14.6.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 14 de junho de 1998. Caderno A – 4
Companhia do Latão atualiza peça de Brecht com talento e técnica de jovens atores
VALMIR SANTOS
São Paulo – Antes do espetáculo, o público aglomera-se no saguão do Teatro João Caetano. A procissão dos “soldados de Deus” surge no meio da multidão. Depois de breve discurso, apresenta-se Joana, a líder carismática. Os “soldados” então convidam os espectadores a entrar pela lateral externa do teatro, via porta e corredor estreitos. O aperto, ombro a ombro, transmite sensação de que a massa é conduzida para um abatedouro, feito gado. A propósito, é assim que começa “Santa Joana do Matadouro”, a nova montagem da Companhia do Latão.
Escrita há quase 70 anos, a peça de Bertolt Brecht (1898-1956) guarda uma atualidade impressionante com os tempos que correm. O autor, cujo centenário de nascimento é lembrado este ano, tomou alguns clássicos da literatura universal – como Goethe, Hõlderlin e Schiller – para construir uma paródia do ideal humanista à época, ainda sob efeito do crash de Nova Iorque em 1929 – aliás, quando a peça começou a ser escrita.
Aqui, Joana está a serviço do Exército da Salvação, entidade de cunho evangélico. Ela prega a não-violência no embate entre operários famintos e patrões que dominam a indústria da carne enlatada na Chicago forrada de gângsters.
O discurso gandhiano de Joana é levado à exaustão. No afã de “mostrar a eles que eles não são maus”, referindo-se aos patrões, ela chega ao ponto de trair seus companheiros boina-pretas em uma greve. Mas depois é“canonizada” pela opção pelos pobres.
Pedro Paulo Bocarra, o rei da carne industrializada – ele não dá um passo sem o aval dos “amigos de Nova Iorque” – é o antagonista da história. Mesmo preferindo o cheiro de cavalo ao do “populacho”, vê seu dique capitalista rompido pela “santa” Joana, mulher que lhe provoca certo encanto.
No duplo jogo entre a contemplação da porta-voz dos operários e a manipulação desta em favor do próprio bolso – não cede uma nesga sem que lhe seja revertido em dobro –, Bocarra é a perfeita tradução daquela meia dúzia de cérebros que operam a máquina capitalista com frieza ímpar.
A atualização de “Santa Joana dos Matadouros” é certamente um dos atributos que levam o pesquisador e tradutor Roberto Schwarz a classificá-la como uma das peças mais importantes do século. Alude, por exemplo, no Brasil, aos recentes saques de alimentos pela população carente e aos conflitos pela terra.
Na montagem da Companhia do Latão, a história ganha um tratamento farsesco, como o dramaturgo alemão sugere. Sobretudo nas interpretações, sempre a recriar o conceito de distanciamento tão propagado pelo Brecht diretor.
Gustavo Bayer capta muito bem o perfil apatetado de Bocarra. O sentimento de araque, a resignação dissimulada, enfim, um personagem erguido no limite entre a comédia desbragada e o nonsense. O vilão, por assim dizer, é convertido em bufão. A empatia está em ser ridículo no pódio do poder.
A vocação de mártir de Joana, edulcorada pela condição de mulher, operária e pobre, fica patente na voz clerical da atriz Débora Lobo e na postura corporal um tanto alquebrada, como se carregasse um fardo, uma cruz, ao longo do espetáculo. Cega em sua crença, a via-crúcis da protagonista lembra a de Jó em sua perseverança.
O elenco, ressalta-se, comete uma atuação uniforme. O vigor, a técnica e o talento são inerentes em cada um dos jovens atores da Latão.
A direção conjunta de Sérgio Carvalho e Márcio Marciano empresta uma dinâmica de espaço que transcende ao palco italiano. “Santa Joana do Matadouro” inventa o seu espaço-total, físico e imaginário. As cenas itinerantes se passam no saguão, do lado de fora, ao ar livre (iluminadas pelas chamas do fogo), no palco propriamente e na platéia. A inversão de papéis culmina com a entrada do público pela cochia, já captando, in loco, a tensão e o sarcasmo que pontuam a encenação.
Márcio Medina reflete atemporalidade na cenografia e nos figurinos. O tom predominantemente cinza das roupas e as correntes suspensas retratam o processo de desumanização sublimado no texto. A iluminação de Wagner Pinto e a música da dupla Walter Garcia e Lincoln Antônio complementam a densidade que se quer atingir por trás de cada esgar, de cada riso.
Talvez seja esta uma boa definição para a Companhia do Latão. Como nos espetáculos anteriores, “Ensaio para Danton” e “Ensaio sobre o Latão”, o entretenimento não vem mastigado. A erudição cede para um cadinho de coloquialismo, deixando fluir o prazer da representação. Os atores estão à vontade e não perdem o vigor do início ao fim. Disciplina e maturidade raras, diga-se, para criticar a “vida de gado” com veemência.
Santa Joana dos Matadouros – De Bertolt Brecht. Direção: Sérgio Carvalho e Márcio Marciano. Com a Companhia do Latão (Georgette Fadel, Edgar Castro, Maria Tendlau, Ney Piacentini, Otávio Martins, Vicente Latorre e outros). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro João Caetano (rua Borges Lagoa, 650, Vila Mariana, tel. 573-3774). R$ 10,00. Até 26 de junho.
Grupo lança segunda edição da “Vintém”
São Paulo – A coerência estética e ideológica em assumir a pesquisa teatral como meio, e não fim, garantiram a Sérgio Carvalho e à Companhia do Latão o respeito do público e da crítica, já a caminho do seu segundo ano.
Desde maio de 97 o grupo ocupa o Teatro de Arena Eugênio Kusnet, na região central de São Paulo. Dentro do projeto Pesquisa em Teatro Dialético, lançou a revista “Vintém”, publicação que veicula as principais questões que norteam o trabalho do grupo.
O número dois de “Vintém” será lançado amanhã, no Eugênio Kusnet. Um dos destaques desta edição é o texto de Roberto Schwarz sobre “Santa Joana do Matadouro”, peça traduzida pelo próprio.
Também na próxima sexta-feira, dia 19, começa o projeto Latão Musical, que vai reunir novos nomes da MPB, como o grupo Curupira, Bando da Fuzarca, Renato Martins, Paulo Padilha e Sandra Ximenez – esta também dará oficina de expressão vocal para atores.
Vintém – Lançamento do segundo número da revista. Amanhã, às 20h. Lata Musical – Show nos finais de semana. Começa na sexta-feira, dia 19, com o grupo Curupira, às 19h. R$ 10,00. Oficina de voz – Com Sandra Ximenez. Quintas (15h às 17h) e sábados (11h às 13h), a partir do dia 25. Teatro Eugênio Kusnet (rua Teodoro Baima, 94, tel. 256-9463.
“Luzes da Boemia” expõe “cicatrizes”
São Paulo – As palavras do dramaturgo e romancista galego Ramón del Valle-Inclán (1866-1936) penetram nas entranhas. Em seus textos, os personagens raramente passam incólume à espiral em que mergulham. São seres que transitam entre o padecimento sem fim na Terra e a platitude dos céus; ora desesperançosos, ora militando nas fileiras de um Deus presumível.
A curta temporada de “Divinas Palavras” em abril, encenada pela alemã Nehle Frank, com um grupo de atores da Bahia, já introduziu o público paulista no universo onírico e ao mesmo tempo realista de Valle-Inclán. Quem dá as cartas agora é o diretor William Pereira. Ele montou “Luzes da Boemia”, outra do dramaturgo galego, tão contundente quanto. A história do poeta cego e marginal, à mercê da condição miserável em que vive, e sem abdicar da índole artística, resulta em libelo à dignidade de ser humano.
Max Estrella (Heitor Goldflus) passa a limpo a sua história naquele que se converterá em último dia de vida. Abandona a fome do lar, compartilhada por mulher e filha, e perambula por uma Madri “absurda, brilhante e faminta”. Quem o guia pelos bares e vielas é o amigo – mas nem tanto – Don Latino de Hispalis (Roberto Leite), interlocutor dileto no testamento oral.
O legado é de muita dor. “Os olhos são uns iludidos embusteiros”, filosofa o cego Max Estrella, se autoproclamando um “mero Tirésias”. “Abaixo a literatura do êxtase”, protesta o poeta, desdenhando dos “moleques modernistas”. “Onde eu vivo é sempre um palácio”, delira o homem miserável. “Eu sou um espectro do passado”, consola-se, por fim.
Mas uma peça que cita Nietzsche e Calderón de La Barca não se convalesce somente de niilismo; sinaliza também com esperança. Afinal, como escreve Valle-Inclán, as coisas não são como a gente as vê, mas como as recordamos. E o que sobra de “Luzes da Boemia”, ao final, é a convicção de que o exercício de uma ética, por mínimo que seja, foi e continua sendo a base para tudo na vida.
Os personagens deformados fisicamente, a sabujice do amigo traidor, a excrescência do jornalista travesso (atuação hilária de Plínio Soares), os intelectuais infantilóides, a secretária estúpida, o ministro canalha, o povo esfarrapado que passa fome na rua, enfim, o painel pintado pelo autor é demasiadamente humano.
O operário Mateus (Olair Coan) que Max Estrella encontra na prisão, recluso pela brutalidade militar, é o personagem de resistência. E pela dignidade deste que o poeta chora de impotência e raiva. O abraço dos dois na cela, diante da morte anunciada, é tocante.
Serve como contraponto ao abraço frouxo e distante que o próprio Estrella experimenta quando encontra um amigo de outrora, hoje enfastelado na cadeira de ministro. Vinte anos depois, não sobrou nada dos ideais que trocavam no passado.
Há uma dureza física e, ao mesmo tempo, uma fragilidade iminente na interpretação de Heitor Goldflus. Seu Max Estrella não é arrogante nem piedoso. A couraça, no entanto, vai-se desmontando aos poucos. A visão retomada à beira da morte, ele tremendo, sugere uma brecha para o porvir. Uma atuação circunscrita ao universo interior. Mas não necessariamente intimista – há uma reserva no personagem que Goldflus faz questão de manter.
Não se trata de espetáculo fácil. Como o fez em “Sinfonia de Uma Noite Inquieta – Ou o Livro do Desassossego”, Pereira soube cavocar a alma esmerilhando a palavra, o gesto e a plasticidade cênica.
A dramaturgia de Silvana Garcia, os figurinos de Leda Senise, a iluminação de Guilherme Bonfanti e a cenografia assinada pelo próprio diretor, enfatizando o vazio no espaço, resultam numa montagem bem cuidada. O trabalho já valeria por reluzir a poesia de Valle-Inclán neste final de milênio, a lembrar as cicatrizes eternamente abertas, o lado escuro de nossas vidas. Mas “Luzes da Boemia” vale muito mais porque é teatro maior, com poder brutal para emocionar.
Luzes da Boemia – De Ramón del Valle-Inclán. Direção e tradução: William Pereira. Com Angela Barros, Carlito Salvatore, Clarissa Drentchinsky, Cristina Rocha, Gustavo Engracia, Ivan de Almeida, Newton Milanez, Pedro Paulo Eva, Telma Vieira e outros. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Arthur Azevedo (rua Paes de Barros, 955, Moóca, tel. 292-8007). Duração: 120 minutos. R$ 10,00. Estacionamento gratuito. Até 28 de junho.
Reestréia a montagem “Sinfonia”
São Paulo – Um dos mais belos espetáculos da temporada passada reestreou no Teatro Faap, na Capital, em horário alternativo.
“Sinfonia de Uma Noite Inquieta – Ou o Livro do Desassossego”, que o diretor William Pereira – o mesmo de “Luzes da Boemia” – adaptou da obra de Fernando Pessoa, constrói uma espécie de poema cênico, onde os quatro intérpretes (Adriana Mendonça, Patrícia Zuppi, César Guirao e Frederico Foroni) revezam-se na pele do escritor português.
O espetáculo reflete sobre o negativismo na obra de Pessoa.
A adaptação foi fundo na evanescência do “Livro do Desassossego”, o diário que só veio a público em 1982, 47 anos depois da morte do poeta.
O Fernando Pessoa que está no palco, quadruplicado, é bastante representativo do homem que mutiplicou-se porque sua literatura era maior que e1e.
Sinfonia de uma Noite Inquieta – De Fernando Pessoa. Adaptação e direção: William Pereira. Terça e quarta, 21h. Teatro FAAP (rua Alagoas, 903, Pacaembu tel. 3662-1992, estacionamento gratuito). Duração: 80 minutos. R$ 20,00. Contato para escolas: tel. 258-6740. Até 24 de junho.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.