O Diário de Mogi
23.8.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 23 de agosto de 1998. Caderno A – 4
Discriminação de profissional é abordada com crueza e lirismo na montagem
VALMIR SANTOS
São Paulo – No imaginário sócio-cultural do brasileiro, as empregadas domésticas são frequentemente aviltadas em seus direitos. Quer na vida real, quer na ficção (vide Olímpia em “Trair e Coçar, ÉSó Começar” ou Edileusa em “Sai Debaixo”). Essas profissionais são exploradas e tachadas de “burra” num piscar de olhos. E não se trata apenas de ranço machista. Numa definição elementar, são mulheres humildes tratadas como escravas e relegadas à míngua.
Da ausência de registro na carteira profissional (uma luta sindical que ganhou visibilidade recentemente) até a relação sub-humano com patrões e patroas, a discriminação reflete a face mesquinha e hipócrita da sociedade – em especial, da sua classe média. É “sujeira” da grossa sob o tapete…
A relação de poder entre quem contrata e quem presta serviço reproduz a falta de respeito para com o próximo. Um salário injusto, um quartinho diminuto, uma sujeição de “pessoa menor” dentro da casa-senzala, enfim, os papéis hierárquicos como que justificam tal tratamento, desprezando-se direitos humanos universais – e infelizmente consagrados mais no papel do que na vida como ela é.
Esse pensamento vem à tona por conta do espetáculo de dança-teatro “Domésticas”, a nova montagem da atriz, bailarina, coreógrafa e diretora Renata Melo (“Bonita Lampião”, 94).
A partir de pesquisa com “jovens, idosas, mães, viúvas, solteiras, abandonadas, que amavam ou odiavam a profissão, seus patrões…”, Melo escreveu o texto e concebeu um espetáculo tocante e lírico em sua comicidade trágica.
O raio-X mostra quem são essas mulheres, seus desejos, sonhos e frustrações sem fim. A partir de três empregadas que ora se revezam e ora compartilham a cena, a peça mostra quadros independentes que, no entanto, complementam-se pela cumplicidade temática nos planos da injustiça, da afetividade, da alegria, da tristeza, do desalento, enfim, da divagação diante do exercício de viver.
A própria Renata Meio, mais as atrizes-dançarinas Lena Roque e Cláudia Missura, são intérpretes meticulosas na condução de suas personagens. O pressuposto rigor coreográfico harmoniza-se aqui com o espaço mais arejado do teatro. Porém, a imposição do verbo não descaracteriza, em momento algum, a fluência de gestos e movimentos. Mesmo no “timming” dos diálogos o espaço cênico é de alguma forma preenchido, corporalmente falando.
“Domésticas” fura o universo feminista e também coloca em cena a figura masculina. Os personagens de Eduardo Estrela (chofer, pai, etc.) não contrapõem, mas revelam que são discriminados tanto quanto. Seu chofer, por exemplo, enamorado de uma empregada, confessa que seu sonho é fazer um crediário.
Os pequenos anseios e as grandes decepções vão, aos poucos, compondo o fio do espetáculo. Para citar a frase obrigatória do início da peça: “Parece um trato que a gente faz: a gente limpa eles suja, a gente passa eles amassa, a gente arruma eles bagunça, a gente guarda eles joga, a gente põe eles tira, a gente tira eles põe. O serviço nunca acaba, o serviço acaba com a gente.”
Mais esta, que também consta do programa bem bolado, em forma de carteira profissional: “Quando a gente não pode fazer mais nada, então vai ser empregada. Come o que sobrou, se falta frita um ovo”. Tudo assim, a seco.
Elas, as empregadas, gostam de “música triste”, de fotonovelas, de novelas. Aliás, lêem faltando letras”. Esperam o “príncipe encantado”. Orgulham-se de mandar um dinheirinho para o pai e a mãe distantes. E gostam de preencher o pouco tempo de folga com digressões sobre o sol e a lua, satélites tão distantes quanto a realidade em que sobrevivem para o ganha-pão.
Adotando narrativa testemunhal em boa parte do espetáculo como num testemunho vivo para os espectadores, as empregadas fazem seus relatos sem interromper as tarefas cotidianas – acostumadas que estão a todo tipo de pressão. Assim, as vassouras de piaçava são incorporadas à movimentação. O mesmo ocorre com o balde e o pano de chão; com as flanelas; com o aspirador de pó; com os uniformezinhos indefectíveis.
A movimentação conjunta, ainda que às vezes propositada-mente desleixada, tem lá sua geometria. Outro destaque é o esforço intensivo para traduzir a mesma sonoridade produzida por gestos e objetos durante o trabalho de limpeza nos vários pontos de uma casa. Essa perspectiva sensorial confere mais vida à ação.
O cenário asséptico de Daniela Thomas e Marcelo Larrea, com suas paredes forradas por azulejos brancos, contrasta com a obsessão das empregadas em limpar e limpar o que não está sujo, num determinismo que, ao final das contas, limita suas próprias vidas à condição submissa em que se encontram.
Esse “folclorismo” é pincelado em “Domésticas”. Ainda quando tratadas “como cachorro”, custa a algumas mobilizar-se para reivindicar os direitos da profissão. A identidade não é só questão de “nome bonito”, mote do quadro de Raimunda e Antonio, ambos descontentes, sim, mas com respectivos prenomes, não com suas realidades.
Trata-se de um espetáculo de mão dupla: instiga o riso e cutuca a consciência dos espectadores, em sua maioria classe média. Os quatro intérpretes são envolventes. Renata Melo, em particular, é plena na introjeção da personagem, da voz à mão que amacia a roupa passada. Lena Roque, Claudia Missura e Eduardo Estrela também se entregam com a mesma energia, inclusive nos solos, garantindo o público nas mãos.
“Domésticas” acerta em não exceder na preocupação estética, procedimento comum em se tratando de dança-teatro (quando criadores querem fundir as linguagens com tanto virtuosismo que terminam por anulá-las). O equilíbrio aqui é de tal monta que não se distingue propriamente um e outro – teatro e dança conjugam-se a favor dos personagens e de suas histórias sem atropelo.
Nessa que é das melhores montagens em cartaz na Capital (fica até o final de agosto mas deve ser prorrogada), o entretenimento flui com a mesma intensidade da denúncia. Função mais do que louvável de uma arte verdadeira em tempos de tanta injustiça social.
Domésticas – Direção, coreografia e roteiro: Renata Melo. Com Cláudia Missura, Lena Roque e Renata Melo. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 12,00. Duração: 70 minutos. Até 30 de agosto (há previsão de prorrogar temporada).
“Aqueles 2” voa sobre o chão da vida
São Paulo – Compositor dos destinos na voz de Caetano, o tempo serve de moto-contínuo para a história de Pedro e Joana, os personagens de “Aqueles 2”. A peça escrita e dirigida por José Geraldo Petean oscila presente e passado na vã tentativa de vislumbrar o futuro a partir de uma perspectiva onírica.
Essa diluição de tempo e espaço pode confundir no papel, mas é bem elaborada em cena. Entre montes de areia que forram o tablado montado numa sala do restaurante Piolim, tradicional reduto da classe teatral na rua Augusta, Eloisa Elena Joana) e Marcelo Góes (Pedro) recriam o lúdico e o trágico com sutileza distinta da realidade.
O que está em jogo – eis uma palavra-chave para se compreender a aventura do texto – é a impossibilidade amorosa. “Aqueles 2”, na essência, não está longe de “Romeu e Julieta” ou “Tristão e Isolda”, para citar os clássicos.
Se nas tragédias a intervenção do mundo externo constitui empecilho concreto para a união de seres enamorados, aqui, no âmbito particular – ainda que não se situe o tempo e o espaço -, os entraves são antes frutos das vicissitudes humanas do que de natureza outra.
Joana e Pedro, os personagens, deslizam suas vidas por um árido terreno em que aparentemente têm segurança, mas logo sucumbem ao primeiro imprevisto da vida.
Toda a história, percebe-se depois, tem como eixo a imprudência. Em flashback, os dois desfrutam de uma noite de amor, bebem bastante e ele, já bastante debilitada, insiste em ir embora e dirigir pela estrada madrugada adentro.
O acidente quase lhe provoca a morte. Joana fica com um sério problema na perna e, pior, é obrigada a romper com seu objeto do desejo por conta da ameaça do pai, que enxerga nele, Pedro, a causa de toda a desgraça do ponto de vista familiar e francamente burguês.
De volta para o futuro – um movimento que ora insistem em levar adiante e ora insistem em levar adiante e ora recuam -, os dois vêem-se obrigados a lidar com o real. Não há mais incosciência de viver por viver.
Joana aprende a pôr os pés nos chão. É assim que Pedro a reencontra, anos depois. Ele, claro, tenta cavucar a poesia de suas vidas, num passado remoto. Mas não encontra guarida. A não ser nas lembranças, das quais ambos parecem nutrir-se o tempo todo.
O texto de Petean, bem como sua direção, não se esquivam de assumir esse alheamento de almas apaixonadas que, de qualquer ponto de vista que não o dos envolvidos, pouco interessa. Mas não é bem assim.
“Aqueles 2” exala o sabor do desprendimento, do poder da aventura, de um extinto de liberdade, de permissão, enfim, que dificilmente se depara em vida – ou depois dela, como se queira. O problema, demasiado humano, é que tanta leveza não sobrevive para contar suas glórias. Num átimo de segundo, a vida branda sua fiel balança para compensar, para guindar os filhos alados para o chão da estrada.
As atuações perseguem o mesmo conceito de alteridade. Eloisa Elena e Marcelo Góes estão integrados em cena. Seus personagens se movimentam com leveza.
Todos os seres que estão ao redor de Joana e Pedro não ficam suficientemente claros para o espectador. Esses “vultos” não importam para o enredo que celebra a possibilidade do indivíduo em sua plenitude e relega normas ditas familiares, sociais. Os laços, aqui, são de outra ordem: a do coração.
Num tempo em que as noções de romance perdem-se em pós-isso, pós-aquilo, a montagem impõe-se como resgate de uma entrega menos oblíqua.
Joana e Pedro não foram felizes para sempre. Mas a felicidade revela-se um meio, e não um fim, quando as partes envolvidas são mais honestas consigo. “Aqueles 2”, ele e ela, pelo menos tentaram.
Aqueles Dois – Texto e direção: José Geraldo Petean. Com Eloisa Elena e Marcelo Góes. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Espaço Piolim (rua Augusta, 902, Cerqueira César, tel. 256-9356 e 244-4587). R$ 15,00 (estacionamento gratuito e 50% de desconto no jantar do Restaurante Piolim, mediante apresentação do canhoto do ingresso). Duração: 70 minutos.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.