O Diário de Mogi
25.10.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 25 de outubro de 1998. Caderno A – 4
Montagem da Cia. Folias D’Arte aposta na transformação pela ética
VALMIR SANTOS
São Paulo – De Fellini, o espírito libertário. Do brasileiro anônimo, a sobrevivênCia. Em ambos, enfim, a resistência. “Folias Fellinianas” chacoalha as bases do país, expõe suas chagas e imediatamente celebra a ética, em todas as suas instâncias, como única possibilidade criativa e transformadora para os tempos que correm.
Quem, afinal, em sã consciência, pode compartilhar da pregação rasteira de que “ética demais atrapalha”? Como exercer a cidadania com a bandeira do “rouba, mas faz”? “Folias Fellinianas” questiona tudo isso sem xenofobismo de araque. Faz um grito de alerta para esse Brasil neoliberal e globalizado que vem invertendo absurdamente os mínimos valores. A fala de um dos personagens é suprassumo: “Integridade, em tempos de crise, é crime”.
A montagem da Cia. Folias D’Arte atualiza o engajamento do teatro brasileiro nos anos 70, quando o “inimigo”, o regime militar, era mais visível. O suporte agora está fundado não exatamente na política, mas no ser humano, na figura dos milhões marginalizados socialmente e, ainda assim, depositários de esperanças a perder de vista.
Tampouco se prega o discurso direcionado dos Centros Populares de Cultura (CPCs), no auge da União Nacional dos Estudante (UNE). Os tempos são outros. No espetáculo, o conteúdo político-ideológico é emoldurado pela alegoria, pelo vôo dos artistas.
Evoca-se o espírito mambembe, a comédia de arte, o musical, a festa popular, a poesia cantada, o painel suspenso que retrata a história do povo como nos murais de Torres García, enfim, a matéria-prima é toda ela composta do ato de criar, de transcender para derrubar os “muros”, para “salvar o sonho”.
“Folias Fellinianas” cita Euclydes da Cunha, Castro Alves, Joãosinho Trinta, entre outros, para reciclar as memórias vivas. Aqui, os personagens não têm identidade. O Diretor (Guilherme Sant’anna), a Produtora (Nani de Oliveira), a Jornalista (Patrícia Barros), o Brasil (Rogério Bandeira), o Velho (Valdir Rivaben), a Mãe (Saryda Andara), o Rapper (Edgar Bustamante) e o Anjo Branco (Fernando Correa) patinam em suas perspectivas a curto, médio ou longo prazo.
Reunidos por acaso em torno da gravação de um filme, eles serão mobilizados pela presença de Ninguém (Renata Zhaneta), um mensageiro incumbido de entregar cartas, a pedalar por aí em sua bicicleta.
O texto de Reinaldo Maia, gestado em processo com o elenco, concede a Ninguém o tesouro a ser cobiçado: a plenitude de uma ética pessoal coerente com o mundo que o cerca; uma fluência de viver em contraste com o final de século acelerado. A saída está no indivíduo e não na nação.
Esclarecidas as partes, tem início a canibalização de Ninguém, alçado à condição de “santo” graças às visões que têm por conta de uma dor de cabeça intermitente, pela qual roga apenas uma aspirina – mas lhe receitam a “canonização”.
O circo de horrores, com tintas neo-realistas, apresenta desde números sensacionalistas, como as irmãs siamesas (na sugestão para acabar com a fome, uma come o que a outra defeca, ciclo da miséria), até culminar com a morte de Ninguém, queimado vivo tal qual o índio Galdino Jesus dos Santos.
É um espetáculo que não dá um soco no estômago e nem rouba o chão do espectador. Simplesmente não ignora a história que passa diante dos olhos de quem está disposto a ver. Ao peneirar o passado para constituir seu presente com verdade, “Folias Fellinianas” estabelece uma ponte contundente, porque embalada com o talento dos seus artistas.
Renata Zhaneta está à vontade no papel masculino de Ninguém. Arma a voz e o corpo com desenvoltura, é tranqüila na passagem interativa com a platéia. Extrai magia na relação com a bicicleta, curiosamente o veículo que equilibra o personagem no chão da razão ética.
Guilherme Sant’anna não fica atrás com seu Diretor histérico, ganhando a empatia instantânea do público. As demais atuações também envolvem com criatividade. Uma ressalva para Rogério Bandeira (Brasil), com matizes remanescentes de “Cantos Peregrinos”, o que limita as possibilidades mil do personagem.
Na estréia, quarta-feira passada, “Folias Fellinianas” ressentia-se ainda, aqui e ali, de um excesso de retórica no texto. São algumas reiterações, dico tomias (bem x mal, solidários x mercadores da alma) que terminam por dispersar a atenção do espectador.
O que fica, porém, é a coerência estética e ideológica da Cia. Folias D’Arte e do seu diretor, Marco Antonio Rodri gues. Como em “Verás Que Tudo É Mentira” (1994), depois em “Cantos Peregrinos” (1997), trata-se de um projeto que elege a arte popular, em sua excelência, como veículo de formação de um público de teatro mais crítico e, por extensão, de seres humanos mais dignos com seus papéis na sociedade.
“Sonhar, viver, criar”, esse é o espírito. Pode haver engajamento mais honesto?
Folias Fellinianas – De Reinaldo Maia. Direção: Marco Antonio Rodrigues. Direção Musical: Sérgio Villafranca. Cenografia: Fernando Monteiro de Barros. Figurino: Atílio Belline Vaz. Preparação corporal e circense: Mariana Maia. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Aliança Francesa (rua General Jardim, 182, Vila Buarque, tel. 259-0086). R$ 10,00 (quinta) e R$ 20,00. Duração: 120 minutos. Até final de novembro. Apoio: Fundação Conrado Wessel.
Rodrigues dirige 4 peças
São Paulo – Com “Folias Fellinianas”, Marco Antonio Rodrigues soma quatro peças na atual temporada paulistana. Andrade (leia crítica abaixo)
O musical “Cantos Peregrinos”, de José Antônio de Souza, está em cartaz há um ano e meio, agora no Teatro Ruth Escobar, com a Cia. Folias D’Arte.
A comédia “O Assassinato do Anão do Caralho Grande”, de Plínio Marcos, que estreou há um ano, fica até hoje no Sérgio Cardoso, interpretada por 35 atores oriundos da Oficina Cultural Oswaldo de Andrade (leia crítica abaixo).
E a tragédia “Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues é encenada por alunos recém-formados no Teatro-Escola Célia Helena, onde, permanece em cartaz.
“É uma coincidência feliz poder trabalhar com essa gente que praticamente forma uma família, no bom sentido”, diz Rodrigues. “Para nós o teatro nunca deixou de ser engajado”
A Cia. Folias D’Arte tem cinco anos. Entre as montagens anteriores destaca-se “Verás que Tudo é Mentira” (1994), de autoria de Maia.
Senhora dos Afogados – Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Escola Célia Helena (rua Barão de Iguape, Liberdade, tel. 279-0470). R$ 10,00. Até dia 15.
Cantos Peregrinos – Sexta e sábado, meia-noite. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). R$ 3,00 (consumação mínima).
“Assassinato…” traz atores sem vícios
São Paulo – O circo fala alto no peito do dramaturgo Plínio Marcos, 61 anos. Ele que já foi palhaço e tem no picadeiro a base para o fazer artístico. “Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que é por eles que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha que se valer da técnica mecânica”, encerrou assim o seu célebre manifesto “O Ator”.
Em “O Assassinato do Anão do Caralho Grande”, dos textos mais recentes (1996), o autor de “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (1965) retoma a defesa orgânica do artista como ser em constante conflito com a sociedade em que vive.
Plínio sabe esquadrinhar o Brasil em que vive, O poder, em sua constatação mais medíocre, é representado pela prefeitura, pela justiça, pela mídia, na base da velha e viciada estrutura.
Do outro lado, a resistência humanista dos artistas. Aqui, representados pelos ciganos do Gran Circus Atlas. São trapezistas, acrobatas, enfim, gente que trabalha sob lona e sobrevive da magia de encantar o público.
Essa dualidade na forma de olhar a vida ganha relevo na montagem do diretor Marco Antonio Rodrigues, com jovens das Oficinas Culturais Oswaldo de Andrade. O espetáculo estreou em janeiro e encerra temporada hoje no Sérgio Cardoso.
Pelo caráter alegórico de “O Assassinato do Anão…”, um libelo à arte do circo, Rodrigues tem a seu favor a energia com a qual o grupo de 35 atores pisa no palco.
São interpretações despojadas e fundamentadas em pesquisa cênica que leva em consideração o corpo como instrumento crucial para desenhar personagens tão arraigados na cultura brasileira.
Fábio Ferretti (Dona Ciloca), Ireny Silva (Mãe Di), Nani de Souza (Zolá Manuche), Paulo Henrique (Macaco) e Denis Goyos (Bicha Lili), para citar alguns, têm seus personagens nas mãos. E são papéis no limite do estereótipo, felizmente recriados de acordo com o talento de cada um. (É louvável, por exemplo, a forma como Henrique coloca seu corpo e alma à disposição do seu Macaco, sem superficialidade).
O diretor costura a montagem com mão barroca. É minucioso na expressão dos atores, na ocupação harmônica do espaço, inclusive no plano aéreo. A cenografia (Atílio Beline Vaz) catalisa a cena com tranquilidade, transitando da periferia para o centro do palco sem prejuízo dos territórios dedicados ora ao “coro”, ora à atuação solo.
“O Assassinato do Anão…” consagra a força do ator jovem, despido de vícios, aberto para um novo com o qual dialoga de igual para igual, sem se apequenar. Isso quando o diretor – caso de Rodrigues – deixa.
O Assassinato do Anão do Caralho Grande – De Plínio Marcos. Direção: Marco Antonio Rodrigues. Cleber Toline, José Paulo Dantas, Ibrahim Lyra, Rodolfo Falcão, Mariana Maia, Natasha Rodrigues, Nei Gomes, Allan Benatti etc. Última sessão hoje, 20h. Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 196, Bela Vista, tel. 288-0136). R$ 10,00. Duração: 100 minutos.
Em comédia, Dip inspira reflexão
São Paulo – “Eu não quero mudar de computador, de você, de milênio!”, protesta a personagem de “Por Água Abaixo”, uma “comédia filosófica” escrita e interpretada por Angela Dip. Esta comediante de mão cheia condensa maturidade nesta que é das suas melhores aventuras pelo teatro, escrevendo e atuando com esmerado senso de inventividade e leveza.
A começar pela gênese do texto. Dip se inspira na história da professora de etiqueta e dança Annie Taylor. Em 1901, esta doidivanas desceu as Cataratas do Niágara (EUA), protegendo seu corvo com apenas um barril. Resultado: esconações, aqui e ali, e muita fama à custa da coragem.
Pois a atriz surge com um barril-cenário-figurino e, em torno desse objeto esférico, ela convida o público a embarcar nas desventuras de uma mulher desesperada à beira do milênio, em crise como todos, mas a apenas alguns minutos de se atirar da catarata.
Os queixumes vão desde a pêndega com Deus sobre a velhice, passam pela implicância com as regras gramaticais (notadamente os coletivos de “chinelos”, “cupins”, espelhando a busca da própria individualidade), enfim, e chegam aos protestos pela modernidade que impõe mais do que interage.
É com esse espírito desbravador que a mulher não se atribui um nome à personagem, conferindo-lhe um caráter universal pela média acaba rompendo totalmente com as noções de espaço, explorando todas as direções. “O chão não é o limite, é o teto”, filosofa.
Nesse movimento centrífugo, a mulher transforma-se em furacão de si. De outra forma, não conseguiria sair do marasmo, ir adiante para “viver, dorrmir, sonhar, quem sabe?”, como deixa claro o bordão da anti-heroína politicamente incorreta, chata e encantadora em sua transparência.
Angela Dip esbanja a segurança de uma Denise Stoklos em monólogo, corroborada pela direção de Vivien Buckup (“Para Sempre”, “Cenas de Um Casamento”), que a cada espetáculo afina sua relação com o trabalho de ator e, como conseqüência, o privilegia com equilíbrio. (Aliás, ressalta-se aqui o feminismo subliminar do texto).
A exigência corporal de Dip é atendida com muita técnica. “Por Água Abaixo” é uma montagem enxuta. Na sua brevidade de 50 minutos, estimula a reflexão com recursos iminentemente artísticos (a extremidade oposta da solidão) e, cereja no bolo, traz uma Angela Dip em estado de graça.
Por Água Abaixo – Texto e atuação: Angela Dip. Direção: Vivien Buckup. Sexta e sábado, meia-noite. Teatro Crowne Plaza (rua Frei Caneca, 1.360, Cerqueira César, tel. 289-0985). R$ 15,00. Duração: 50 minutos.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.