Folha de S.Paulo
22.10.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, sábado, 22 de outubro de 2005
TEATRO
Montagem do Teatro de Narradores tira foco feminista da protagonista Nora e expõe violências pública e privada
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
Quando Nora bate a porta e vai-se embora em “Casa de Bonecas” (1897), ela faz mais barulho do que tão-somente romper com a ordem matriarcal do séc. 19 recortado pela dramaturgia do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906).
A personagem encerra enigmas para além da visão universalista da mulher que abandona marido, filhos e, com licença, vai à luta.
Mais de um século depois, qual seria o seu destino? O que mudou de lá para cá?
Ao mergulhar naquilo que faz com que cada pessoa se torne o que é, o grupo Teatro de Narradores chegou a “Nossa Casa de Bonecas”, montagem que estréia hoje no Fábrica São Paulo.
Não se recusa a perspectiva da liberação da mulher no clássico de Ibsen. “Mas a questão que nos colocamos é: qual foi o custo disso, o que mudou de fato nessa sociedade e como essa mulher se enquadra hoje?”, diz o diretor José Fernando Peixoto de Azevedo, 35.
Reduz-se o foco na protagonista e radicaliza-se a análise das relações que envolvem todos os personagens. Transposta para o contemporâneo, essa Nora da classe média paulistana (interpretada pela atriz Teth Maiello) não é “simplesmente ingênua”, diz.
É de menos conhecer as razões que a levaram a ocultar durante anos a falsificação da assinatura do pai para presentear o marido com uma viagem. Justamente os dois que a fazem de joguete.
Nora foi movida por interesses próprios antes de pôr fim ao casamento de oito anos. “Herdou uma cultura que joga com essas possibilidades”, diz Azevedo.
Ibsen nos lembra que a sabotagem é ainda uma marca dos interesses público e privado.
“Levamos a sério o fato de que mais de um século depois, tal ruptura integra-se ao movimento fetichista que envolve a vida, e que toda nova tentativa corre o risco da sabotagem”, afirma o grupo no programa do espetáculo.
Foi cotejada a tradução de Karl Erik Schollammer e Aderbal Freire-Filho, este o diretor de montagem recente que passou pela cidade. Azevedo diz que fez poucas adaptações e procurou preservar o texto de Ibsen.
O espaço cênico é dominado pelo vazio e pelo branco, no chão e ao fundo. “Esses personagens fazem um esforço grande para apagar os vestígios, por isso o passado vem à tona de maneira tão radical”, diz Azevedo.
Completam o elenco André Collazzi, Barbara Araujo, Clayton Freitas e Paulo Barcellos.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.