Folha de S.Paulo
18.12.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 2005
TEATRO
Ao navegar o rio para ver o espetáculo, público se impressiona com a paisagem; Vertigem faz último ensaio aberto
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
A água escura, o lixo flutuante, as pontes de concreto vistas de baixo, os faróis dos carros que parecem andar em câmara lenta nas marginais: o rio Tietê e sua paisagem monumental roubam a cena como um “primeiro-ator” em “BR3”, novo espetáculo do grupo Teatro da Vertigem.
“Estou no rio da minha cidade, onde nunca tinha entrado. Onde pessoas da minha família, meus avós, já nadaram. Daqui do barco, é um contraste saber que chegamos ao esgoto. É mais um esgoto do que um rio”, diz o representante comercial Antônio Luiz Gonçalves Junior, 39, ao final de uma apresentação.
Hoje é o último dia de ensaio aberto (os ingressos estão esgotados). A montagem deve estrear em fevereiro.
“Quando o pessoal da minha geração via o rio Tietê, a gente nunca pensava que um dia poderia navegar nele. O espetáculo já me pegou por aí”, diz a produtora cultural Áurea Karpor, 26.
Ela se deixou levar mais pelo impacto visual (direção de arte de Márcio Medina e desenho de luz de Guilherme Bonfanti). Parte da cenografia é feita de material reciclado. “As garrafas pet que via no leito do rio também estavam no cenário”, afirma Karpor, que disse ter ficado impressionada com a movimentação dos 13 atores.
Alguns deles iam da margem para o barco, e vice-versa, em botes nem sempre notados pelo grupo de cerca de 50 espectadores embarcados no Almirante do Lago, que também abriga cenas em seus três pavimentos. A equipe tem 70 pessoas, entre artistas, técnicos, marinheiros e seguranças.
Antes de embarcar, o professor Marcelo Henrique Pereira dos Santos, 31, queria saber como o grupo articularia as três regiões do país em que foi a campo para conceber o novo espetáculo: a cidade de Brasiléia (AC), Brasília e o bairro de Vila Brasilândia, na zona norte de São Paulo.
“Só existe Brasilândia porque existe Brasília, e só existe Brasiléia porque existe Brasilândia. Acho que tudo isso está amarrado: a necessidade de inventar a cidade perfeita, a religião perfeita, tudo é fruto da complexidade social do nosso país, para o bem e para o mal”, afirma Santos, morador em Brasilândia.
Criada em processo de colaboração, a dramaturgia de Bernardo Carvalho percorre três gerações da família de Jovelina (Marília de Santis). Nos anos 60, ela deixa o Nordeste em busca do marido, que morre durante a construção de Brasília. Segue para São Paulo, onde se torna chefe do tráfico.
A trajetória dela e dos dois filhos, Jonas (Roberto Áudio) e Helienay (Daniela Carmona), vai até os anos 90 e passa pela triangulação dos radicais “BR” no mapa.
Cada personagem segue seu caminho. Cruzam-se às vezes. Noutras, têm seus trajetos modificados, por exemplo, pela Evangelista (Cácia Goulart) e pelo Dono dos Cães (Sérgio Siviero), um policial. A peça entremeia passado e presente, com cenas dentro e fora do barco.
Uma das cenas-síntese de “BR3” talvez seja aquela em que um Jonas imberbe e o Barqueiro (Sérgio Pardal) disparam com a voadeira num redemoinho que põe todos em suspenso, espectadores que giramos por tabela.
O Brasil parece ter tomado um chá de cipó ou devotar tudo ao deus-dará. “Esse país não se enxerga”, diz um personagem. O espetáculo termina com o público no convés superior, a céu aberto, debaixo do “x” das pontes do complexo Ulysses Guimarães, na rodovia dos Bandeirantes. Um “x” que é ponto final?
Para realizar o sonho (ou pesadelo?) desta produção, o Vertigem tem apoio do Programa Municipal de Fomento ao Teatro, da Transrio Navegação Fluvial e do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE).
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.