Folha de S.Paulo
30.11.2006 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 2006
TEATRO
Montagem inédita com atores brasileiros estréia hoje no Sesc Vila Mariana
Peça conjuga “Anjo Negro”, de Nelson Rodrigues, e Missão – Lembranças de Uma Revolução”, do autor alemão Heiner Müller
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
“É como colocar dois pit bulls frente a frente”, diz Frank Castorf, 55. O diretor alemão do Teatro Volksbühne, dado a experimentos cênicos que desconcertam público e crítica, volta ao Brasil para conjugar a “antropofagia” de Nelson Rodrigues (1912-80) com “a sombra política e social da história” em Heiner Müller (1929-95).
“Anjo Negro de Nelson Rodrigues com a Lembrança de uma Revolução: A Missão de Heiner Muller” é o título-mix que suprime vírgulas para friccionar ainda mais os dois autores. A curta temporada abre hoje no Sesc Vila Mariana.
Os pontos de convergência entre as peças, conforme Castorf, se dão pelas questões de racismo. Em “Anjo Negro” (1946), o casal Ismael (ele preto, mas interpretado pelo branco Roberto Audio) e Virgínia (branca, mas vivida pela atriz e cantora negra Denise Assunção) nutrem ódio que é ancestral e vaza para seus filhos -os três primeiros meninos são assassinados pela mãe, enquanto a única menina, fruto da traição de Virgínia com o cunhado, viverá uma relação incestuosa com Ismael, o padrasto.
Em se tratando de Nelson, as poucas linhas anteriores não dão conta do emaranhado de fatalidades sem fim, inclusive com direito a um coro à moda do teatro grego antigo.
Consciência
A esse texto, Castorf aplica excertos de “A Missão – Lembrança de uma Revolução” (1979), como a dar “consciência crítica e política” aos personagens do brasileiro. Müller projeta contextos de uma revolta dos escravos na Jamaica, pós-Revolução Francesa (1789).
Três emissários são incumbidos de incitar a rebelião dos negros contra a coroa britânica. O trio, ele mesmo com suas diferenças de classe e de raça, é formado por um escravo liberto do Haiti, um camponês da Bretanha e o filho de escravocratas jamaicanos. A ascensão de Napoleão, porém, mina tudo.
“Não estou aqui como um bicho exótico. É bom a gente imiscuir-se em coisas que não nos cabem. Pode ser interessante contrapor Nelson a Müller”, diz Castorf, que trouxe recentemente “Estação Terminal América” (versão de “Um Bonde Chamado Desejo”, de Tennessee Williams) e “Na Selva da Cidade”, de Brecht.
Amanhã, ele, o diretor Antônio Araújo (conselheiro de elenco com artistas de vários grupos) e o jornalista Mario Vitor Santos conversam sobre a montagem em encontro gratuito. Sincronicidade: em Porto Alegre, o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz recentemente estreou sua “A Missão” e encerra hoje seminário dedicado a Müller.
Encontro com Frank Castorf
Onde: Sesc Vila Mariana – auditório
Quando: amanhã, às 18h30
Quanto: entrada franca
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.