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Folha de S.Paulo

Tapa reencontra Jorge Andrade

21.2.2008  |  por Valmir Santos

São Paulo, quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

TEATRO 

Grupo de Eduardo Tolentino monta terceira peça do dramaturgo, reflexão sobre o poder paulista
 

Trajetória de fazendeiro e sua família que perdeu terras por causa da crise econômica de 1929 ajuda a entender Brasil de hoje

VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local

“Os que plantaram… Vão começar a colher!”. São as palavras finais de “A Moratória”, murmuradas pela mulher do fazendeiro que perde as terras herdadas do pai e do avô. 

A peça de Jorge Andrade (1922-84) toca em raízes históricas da formação do Brasil entre as décadas de 20 e 30. Retrata a passagem do espaço rural para o urbano, profetiza as concentrações política e econômica do Estado paulista e constata os sentimentos de felicidade e família ditados pela noção de propriedade. O ontem roça o hoje o tempo todo, como se verá no espetáculo do grupo Tapa que entra em cartaz amanhã no Sesc Anchieta, em São Paulo. 

Os chamados “barões do café” foram sacudidos pela crise de 1929 provocada pela quebra da Bolsa de Nova York. Afundaram em dívidas. Seguiram-se a Revolução de 30 e a Revolução Constitucionalista de 32, fechando a era da monocultura e abrindo o ciclo industrial. 

Escrita em 1954, “A Moratória” desenvolve-se em dois planos, passado (1929) e presente (1932), a vida na fazenda e a casa na cidade. Muitas vezes em cenas simultâneas, a dramaturgia desenha em fragmentos a trajetória do patriarca Joaquim, o Quin, e de sua família. 

A decadência abala profundamente os valores aristocratas do fazendeiro interpretado por Zécarlos Machado. Ele tenta manter as rédeas, mas a realidade o coloca em xeque, a começar pelos filhos. Marcelo (Augusto Zacchi) vira operário e Lucília (Larissa Prado) concentra energias no pedal da máquina de costura com a qual sustenta a casa enquanto pai e mãe (Lu Carion) esperam, em vão, ganhar o processo de recuperação judicial das terras e ter as dívidas suspensas. 

“É uma peça espremida entre 1929 e 1932, que talvez tenha sido o momento mais difícil dessa cultura, desse Estado que precisou de uma industrialização, de duas ditaduras, uma civil e uma militar, da transferência da capital federal para, enfim, exercer a hegemonia sobre o Brasil”, diz o diretor Eduardo Tolentino, 43. 

Ele mexeu bastante no texto, o que raramente o Tapa faz; sua premissa é de respeito incondicional ao autor. Mas, aqui, houve cortes equivalentes a meia hora de texto, cenas foram remanejadas, sem prejuízo da sofisticada linguagem de Andrade, como a Folha conferiu na apresentação de domingo passado, no Sesc Santo André. 

Retorno
Do mesmo autor de “Vereda da Salvação” (que Antunes Filho montou duas vezes, a última no mesmo Anchieta, em 1992) e “Ossos do Barão” (adaptada para novela no SBT, em 1997), “A Moratória” é obra que somente foi produzida em 1955, dirigida por Gianni Ratto, e em 1976, por Emílio Di Biasi. 

É “quase um texto inédito”, no dizer de Tolentino, muito estudado e pouco visto. 

“As grandes matrizes do teatro brasileiro tinham que, a cada década, ganhar uma revisão, uma releitura por outros diretores. Os americanos não passam uma década sem assistir a “A Morte do Caixeiro-Viajante” [de Arthur Miller], “Um Bonde Chamado Desejo” [Tennessee Williams] e “Longa Jornada Noite Adentro” [Eugene O’Neill]. São textos fundamentais para os EUA, porque é aí que se forma uma identidade”. 

Daí seu entusiasmo quanto à visita que Os Satyros fazem neste ano ao mítico “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, que o próprio Tolentino dirigiu na década passada. Por falar em matrizes, o grupo Tapa, que completa 30 anos em 2009 e tem grandes dramaturgos estrangeiros em seu repertório, soma três Jorge Andrade (as outras são “Rastro Atrás” e “O Telescópio”), três Nelson Rodrigues, dois Oduvaldo Vianna Filho e dois Plínio Marcos, sempre textos pouco ou nunca encenados.



Peça: A Moratória 
Quando: estréia amanhã; sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h; até 16/3 
Onde: Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, tel. 0/xx/11/3234-3000) 
Quanto: R$ 5 a R$ 20
 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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