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Folha de S.Paulo

Espetáculo de câmara busca intimidade do amor

7.5.2008  |  por Valmir Santos

São Paulo, quarta-feira, 07 de maio de 2008

TEATRO 

Sem arroubos de produção, nova peça de Hirsch liga as razões do coração à linguagem
Os atores Leonardo Medeiros e Arieta Corrêa dão vida à correspondência entre o autor russo Shklovsky e sua musa

Sem arroubos de produção, nova peça de Hirsch liga as razões do coração à linguagem

Os atores Leonardo Medeiros e Arieta Corrêa dão vida à correspondência entre o autor russo Shklovsky e sua musa 

VALMIR SANTOS
Enviado especial ao Rio 

O diretor Felipe Hirsch, 36, traz a São Paulo duas interpretações do discurso amoroso. “Não sobre o Amor” é o espetáculo mais recente da Sutil Companhia de Teatro, que encerrou temporada no domingo no Rio e estréia nesta sexta no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo (CCBB-SP). Dois dias depois, o Teatro Municipal abriga a primeira de quatro sessões de “O Castelo do Barba-Azul”, a incursão de Hirsch pela direção cênica de ópera. 
 
Ambos os trabalhos, um contemporâneo e outro clássico, tocam as vicissitudes de um homem e de uma mulher na tentativa de alinhar o outro ao um. “Não sobre o Amor” é um espetáculo de câmara, sem arroubos na produção, para dois atores. O ponto de partida para a dramaturgia são as cartas -reais e ficcionais- trocadas entre dois escritores, o russo Victor Shklovsky (1893-1984) e a franco-russa Elsa Triolet (1896-1970). 
 
Ópera composta pelo húngaro Béla Bartók, em 1911, “O Castelo do Barba-Azul” também é protagonizada por um casal, o duque e sua quarta mulher, Judith, que, encerrados em um palácio sombrio, tentam superar traumas do passado. “Na ópera, a força do amor fez com que o duque abrisse as portas, iluminasse o castelo, que no fundo é ele mesmo, e refletisse sobre sua condição”, diz Hirsch. “Em “Não sobre o Amor”, o sentimento também esteve presente entre figuras reais. Só que Victor, como formalista, envolveu esse amor na busca de um formato para uma obra literária.” Ou seja, “Zoo, or Letters Not about Love”, cuja primeira edição alemã é 1923. 
 
Elsa Triolet foi casada com o poeta surrealista Louis Aragon e alçada à condição de musa de Victor Shklovsky, especialista em Tolstói e um dos principais teóricos do formalismo russo. 

Estranhamento
Ao permitir-se sentimental na relação epistolar com Triolet, Shklovsky não dissocia as razões do coração da linguagem. Não à toa, faz citações a Cervantes, Andersen e Swift, entre outros. Alude à técnica de “desfamiliarização” que estruturou, na qual desloca um elemento de seu contexto para fazer com que seja percebido por meio da sua ausência. Isso remete ao efeito de “estranhamento” de Bertolt Brecht, em favor do ponto de vista crítico do espectador. 
 
É o que acontece na correspondência com Triolet, ou Alya, como a batiza no livro. Ela pede ao interlocutor que não deite mais palavras sobre amor. “Pare de escrever sobre o quanto, o quanto, o quanto, o quanto você me ama, porque, no terceiro “quanto”, eu começo a pensar em outra coisa.” 
 
“Essa condição apaixonada serviu a ele como metáfora para um livro que falaria de exílio, de distâncias”, afirma Hirsch. O diretor co-adaptou com o assistente Murilo Hauser a tradução do inglês pelas irmãs Erica e Ursula Migon. 
Na adaptação, são incluídos trechos de cartas entre os escritores Vladimir Maiakóvski e Lilia Brik, irmã de Triolet. Os personagens são vividos por Arieta Corrêa e Leonardo Medeiros. 
 
À narrativa verborrágica, pautada por conceitos e idéias densos em torno da nostalgia, da memória, a cenógrafa Daniela Thomas, parceira da Sutil desde 2001, esquadrinha uma caixa cênica em que o espaço é literalmente desarranjado. Cama, mesa, cadeira, chão, parede, tudo está fora de lugar. 
 
Tal assimetria dialoga com a luz desenhada por Beto Bruel, outro parceiro fixo da companhia. O raio solar que incide sobre a janela transforma-se, cenas adiante, numa clarabóia sob o luar de São Petersburgo ou de Berlim, por onde transitam os enamorados. 
 
Hirsch lança mão de um recurso característico da Sutil: a projeção, no próprio suporte do cenário, de imagens que ajudam a recriar tempos e espaços. Ou de frases introdutórias a cada uma das 28 cartas em jogo. A angústia de Shklovsky é partilhada desde a abertura do espetáculo, quando seu prefácio surge projetado. Um trecho: “Todas as palavras boas estão pálidas de exaustão. Flores, lua, olhos, lábios. Eu gostaria de escrever como se a literatura nunca tivesse existido. Eu não consigo; a ironia devora as palavras. É a maneira mais fácil de superar a dificuldade de se descrever as coisas”. 



Peça: Não sobre o Amor
Quando: estréia sex., às 19h30; qui. a sáb., às 19h30; dom., às 18h. Até 6/7 
Onde: CCBB-SP – teatro (r. Álvares Penteado, 112, centro, tel. 0/xx/11/ 3113-3651) 
Quanto: R$ 15 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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