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Valor Econômico

Narradores visuais e sonoros [desenhistas de luz, som, cenografia, etc.]

7.1.2011  |  por Valmir Santos

Teatro: Equipe técnica sai da sombra e passa a adicionar tanto prestígio aos espetáculos quanto os atores que estrelam as montagens.

 

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

 

Caderno Eu & Fim de Semana – 7/01/2011

 

No segundo intervalo da noite de estreia de “Vestido de Noiva”, em 28 de dezembro de 1943, uma enorme cruz cenográfica tombou no centro do palco do Theatro Municipal do Rio. Alguns espectadores ouviram o estrondo, mas ninguém viu a queda: as cortinas estavam fechadas. O acidente descrito por Ruy Castro na biografia de Nelson Rodrigues, “O Anjo Pornográfico” (1992), virou nota de rodapé diante do impacto da montagem do polonês Zbigniew Ziembinski (1908-1978) para a peça de Nelson Rodrigues (1912-1980), um dos marcos da modernidade nas artes cênicas do país.

 

Felizmente, o ilustrador e pintor paraibano Tomás Santa Rosa (1909-1956) não carregou para a história aquela cruz que subverteu o peso da crença no velório da cafetina Madame Clessy, a personagem que religa passado e presente na trama. Ele inscreveu seu nome para sempre como coautor do espetáculo em que assinava a ambientação cênica, o mapa de luz e os figurinos. Ajudou a traduzir visualmente o entrelaçamento e a fusão dos planos da realidade, da memória e da alucinação na dramaturgia também ela inovadora para a época.

 

O talento e a primazia de Santa Rosa, por si só, não deram moral suficiente às funções basilares dessa arte de natureza coletiva. Durante anos os holofotes circunscreveram-se apenas ao trabalho da primeira-atriz, do astro-empresário, do diretor entronizado, do autor venerável a granjear reconhecimento intelectual. Demorou para a chamada equipe técnica sair da sombra nos bastidores e cabines de operação. Neste século XXI o sistema de produção teatral brasileiro interage de maneira mais ousada e conceitual com cenógrafo, figurinista, desenhista de luz ou de som, preparador vocal, entre outros propulsores de linguagem. Profissionais destacados que conheceram na lida as precariedades de material e de formação. Arregaçaram as mangas. Superaram obstáculos com autodidatismo. Testemunharam o desenvolvimento dos signos e sentidos da cena nas últimas duas, três décadas. E agora dão prestígio às fichas técnicas tanto quanto os interpretes que as estrelam.

 

“Nosso trabalho evoluiu muito, temos mais personalidade no processo de criação”, afirma o arquiteto, cenógrafo e figurinista José Carlos Serroni, o J.C. Serroni. Em 35 anos de experiência, 11 deles em atividade contínua com o diretor Antunes Filho no Grupo Macunaíma e no Centro de Pesquisa Teatral do Sesc-SP, ele já não lê ou escuta deslizes como aqueles da imprensa paulista nos anos 1980, a confundir cenografia com “coreografia” ou “oceanografia”.

 

Fabio Namatame: neste semestre, ele está às voltas com a criação dos 600 figurinos e seus 3.500 itens para a estreia do musical “Evita”

Um dos artistas mais profícuos do Recife, onde atua profissionalmente há 24 anos, o cenógrafo e figurinista Marcondes Lima faz coro na percepção de mais diálogo, respeito e autonomia. “Lembro-me, no início, de satisfazer certos caprichos de atores que implicavam com a cor ou o tipo de um tecido. Hoje não somos mais reféns, temos capacidade de persuasão”, afirma o também ator, diretor e titereteiro cofundador do Grupo Mão Molenga Teatro de Bonecos e parceiro do Coletivo Angu de Sangue.

 

Dois fenômenos recentes propiciam mais clareza à soma das partes dentro de um núcleo artístico no país: o florescimento das superproduções musicais espelhadas na Broadway americana, onde a perfeição técnica é imperativa, e o teatro de grupo e seu ímpeto experimental que valoriza os procedimentos colaborativos sem desbotar as autorias.

 

“Minha intuição é que estamos mais enfiados uns nas áreas dos outros na hora de criar. Aprendemos que quanto mais interferência e troca, melhor o resultado”, pondera a cenógrafa e figurinista Daniela Thomas. Ela despontou no início dos anos 1980 em simbiose com Gerald Thomas, encenador que disseminou as fronteiras borradas das artes cênicas, deslocando o espectador para outras espacialidades e camadas do que vê, ouve e sente. Faz dez anos que Daniela interage continuamente com a Sutil Companhia de Teatro, de Curitiba, com bases extensivas a São Paulo e Rio.

 

Artista referente da produção curitibana, Beto Bruel acumula experiência autodidata desde 1973. Foi colaborador ativo do Teatro Guaíra. “Noto menos rigidez no compartimento das funções. Acho fundamental ter uma boa convivência, independentemente das hierarquias. É difícil trabalhar quando não se conhece o outro”, diz Bruel, tangido para a ponte Rio-São Paulo a partir de “A Vida É Cheia de Som e Fúria” (2000), direção de Felipe Hirsch para a obra de projeção nacional da Sutil.

 

O figurinista Fabio Namatame, de São Paulo, costura há 28 anos as artes do teatro (drama, comédia, musical), da dança e da ópera. “Meu jeito de fazer e pensar não é setorizado. Cada vez mais as perspectivas são conjuntas. Quando sou chamado, é para colaborar. Cada diretor age de uma maneira. Sou bastante aberto, procuro atender à obra e me alimento muito do material que os atores me dão”, afirma.

Neste semestre, sob a direção de Jorge Takla, Namatame estreia o musical “Evita”, dos britânicos Andrew Lloyd Webber e Tim Rice. São estimados 600 figurinos, implicando cerca de 3.500 itens (sapatos, bolsas, acessórios, bengalas). Para ajudá-lo na empreitada, o figurinista contrata como assistentes quatro alfaiates para confeccionar uniformes militares e quatro mestras-costureiras que zelam pelos vestidos.

 

Tunica Teixeira entrou na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) para estudar no Departamento de Música, mas não saía da vizinha Escola de Artes Cênicas, a EAD, onde começou a conceber trilha sonora em 1971. “Antigamente, todo mundo achava que sabia fazer sonoplastia. O diretor costumava usar em cena músicas de seu gosto pessoal. Graças a Deus, isso não é mais comum”, comenta.

“No teatro, um elemento que sai do ponto acaba com a cena, não importa se feita com o melhor ator do mundo”, afirma o sonoplasta Raul Teixeira, 22 anos de profissão (não é parente de Tunica, influência confessa). Vinculado ao CPT antuniano, ele defende a busca permanente de conexão e precisão entre os membros de uma equipe.

 

Polifonia é a imagem que a preparadora vocal Maria Amália Morais, a Babaya, de Belo Horizonte, usa para ilustrar o trabalho do artista cênico (cantar, dançar, interpretar) e ajustar-se ao equilíbrio de forças que deveria reger a prática cotidiana na criação. Ela se dedica ao canto (há 27 anos, discípula de Milton Nascimento e Wagner Tiso) e à fala (há 23 anos, notadamente com os grupos conterrâneos Galpão e Ponto de Partida). Babaya elogia o aumento da capacitação de seus pares em auscultar timbragem, prosódia, enunciação e demais variantes da expressividade. “Entre os fatores que melhoraram o cuidado com a voz estão os avanços da ciência e da tecnologia, a pesquisa no campo da laringologia [pregas vocais]. Nos anos 1980, a gente não encontrava livros tão qualificados”, diz.

 

Os grupos destinam à cenografia cotas de bilheteria que podem chegar a cerca de R$ 8 mil por toda a temporada. As produções médias pagam de R$ 5 mil a R$ 10 mil. As mais caras, com nomes experientes, oscilam R$ 15 mil a R$ 30 mil. Na sonoplastia, um espetáculo alternativo pode pagar de R$ 2 mil a R$ 5 mil, enquanto uma produção de fôlego, de R$ 15 mil a R$ 20 mil. Para a preparação vocal, a remuneração varia de R$ 1,5 mil a R$ 15 mil.

 

Todos os artistas ouvidos nesta reportagem já foram contemplados com os maiores prêmios nacionais ou estaduais destinados às artes cênicas. Seus nomes enredam cadeias próprias na prestação de serviços que avançam para outros domínios (espaço expositivo em museus, desfiles de moda, decoração temática em shoppings ou feiras etc.). Por isso a recorrência com que abrem as próprias empresas ou se permitem o desafio de reverter eles mesmos o déficit de formação.

 

J.C. Serroni e Raul Teixeira, por exemplo, coordenam suas respectivas áreas na SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco. A iniciativa do governo paulista oferece, desde 2010, cursos profissionalizantes em cenografia, figurino, sonoplastia e iluminação, além de outras esferas do fazer teatral. Serroni inaugurou em 1998 o Espaço Cenográfico, no centro de São Paulo, dedicado a cursos livres e estudos. Ele prepara dois livros a ser lançados em breve: “História da Cenografia Brasileira” e “História da Cenografia Mundial”, este um projeto internacional no qual é editor-adjunto. Beto Bruel, por sua vez, está à frente da Tamanduá Som e Iluminação Ltda., empresa que toca desde 1980 em Colombo, na região metropolitana de Curitiba, uma espécie de barracão que emprega 25 técnicos. Babaya fundou em 1991 a sua Escola de Canto, na capital mineira. Daniela Thomas é sócia do também cenógrafo Felipe Tassara na paulistana Anexo.

 

Tanto empenho e inventividade em narrativas visuais e sonoras serão aferidos em junho na Quadrienal de Praga 2011: Espaço e Design Cênico, a PQ’11. A principal exposição cênica internacional é realizada a cada quatro anos na República Tcheca, desde 1967. Organiza seções nas áreas de cenografia, arquitetura, figurinos e projetos de escolas. A equipe curatorial do Brasil adota como tema e conceito para este ano “Personagens e Fronteiras: Território Cenográfico Brasileiro”. Nas 11 edições anteriores, os participantes do país colheram elogios pela singularidade de suas concepções. O encontro que mede o termômetro do teatro contemporâneo injeta autoestima nas gerações brasileiras que vieram depois de “Vestido de Noiva”, transcorridos apenas pouco mais de 60 anos de modernidade nos palcos.

 

(Publicado originalmente no jornal Valor Econômico, caderno Eu&Fim de Semana, pp. 18, 19 e 20, sob título Os astros das coxias).

 

 

OUTROS CRIADORES

 

Cenografia

Aby Cohen

André Cortez

Fernando Mello da Costa

Gringo Cardia

Helio Eichbauer

José de Anchieta

José Dias

Márcio Medina

Marcos Pedroso

Ronald Teixeira

Renato Bolelli Rebouças

Telumi Helem

 

Figurinos

Beth Filipecki

Claudio Tovar

Kalma Murtinho

Kika Lopes

João Marcelino

Lola Tolentino

Márcio Tadeu

Marcelo Olinto

Rita Murtinho

Simone Mina

 

Desenho de luz

David de Brito

Guilherme Bonfanti

Lúcia Chediek

Maneco Quinderé

Marisa Bentivegna

Paulo César Medeiros

Wagner Freire

Wagner Pinto

 

Trilha sonora/sonoplastia

André Abujamra

Marcelo Pellegrini

Pedro Paulo Bogossian

Tim Rescala

Ernani Maletta

 

Preparação corporal/direção de movimento

Andrea Jabor

Inês Aranha

Vivian Buckup

 

Preparação vocal

Isabel Setti

Lucia Helena Gayotto

Madalena Bernardes

 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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