“Causa mesmo espanto ver repentinamente surgir do nada que é o nosso teatro, quase por um milagre de geração espontânea, um autor com tanta audácia, que procura, logo nas primeiras tentativas teatrais, dominar virtuosisticamente o meio de expressão artística que escolheu”, anotou Almeida Prado. A série de documentos cobre seis décadas, desde a primeira montagem de “A Mulher sem Pecado”, de 1942, por Rodolfo Mayer, até “A Falecida Vapt-Vupt”, de 2009, por Antunes Filho.
As 98 críticas versam sobre 20 espetáculos, incluídas as adaptações. Envolve a percepção de 32 profissionais identificados em 15 periódicos dos acervos do Cedoc/Funarte, da Biblioteca Nacional e da Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Segundo a tradutora e dramaturgista Fátima Saadi, editora da “Folhetim”, as análises permitem acompanhar as polêmicas e a progressiva aceitação da obra de Nelson. A prospecção feita entre março e novembro de 2010 resulta útil também aos estudiosos de outras áreas como sociologia, história, antropologia e comunicação.
“Imaginei que, a partir daquele conjunto de críticas, seria possível estudar a relação entre a imprensa e o espaço público de discussão do teatro (até o “Jornal dos Sports” mantinha uma coluna de crítica teatral nos anos 1950). Esse espaço começa a minguar com o golpe militar e mais decididamente dos anos de 1980 em diante”, afirma Fátima. Transparecem o viés psicológico, primeiro prisma de aproximação das peças da fase inicial de Nelson, e o predomínio estético na abordagem pioneira de Almeida Prado, continuada por Sábato Magaldi e Yan Michalski (1932-1990).
Um exemplo de aproximação atemporal. O jornalista Frederico Guilherme Chateaubriand, de alcunha Freddy, escreve no “Diário da Noite” carioca, em 1950, que “Doroteia” é “extremamente poética”, indignado com “quem confunde duas realidades que nada têm de comum”: a poética e a propriamente dita. A crítica e pesquisadora Mariangela Alves de Lima argumenta sobre “A Falecida Vapt-Vupt” em “O Estado de S. Paulo”, em 2008, que Antunes privilegia “o imaginário poético contido nessa peça e deixa em fervura baixa, como lava, o ódio e o fascínio sexual”. Entre os demais nomes focados estão Alberto Guzik, Jefferson Del Rios, José Arrabal, Luiza Barreto Leite, Macksen Luiz, Miroel Silveira, Paschoal Carlos Magno, Paulo Francis e Sérgio Augusto.
Diretor do Centro de Pesquisa Teatral e do Grupo Macunaíma, Antunes discorre em longa entrevista sobre suas montagens rodriguianas desde 1965, com “A Falecida”, junto a alunos da Escola de Arte Dramática (EAD), passando pela paradigmática montagem de “O Eterno Retorno”, de 1981, reunião de “Os Sete Gatinhos”, “Beijo no Asfalto” e “Toda Nudez Será Castigada” – estruturadas sob o conceito do inconsciente coletivo do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961).
A tradução, a criação e a recepção crítica do dramaturgo na França são discutidas em artigos como o do diretor Alain Ollivier, morto no ano passado, e em entrevista com Ângela Leite Lopes, tradutora e professora da UFRJ. Outros ensaístas brasileiros dão lastro à diversidade de enfoques nesse painel que não se quer exaustivo, como observa Fátima, mas amplo no que se tem pensado sobre Nelson Rodrigues nos últimos anos.
Lançada na quarta-feira no Teatro Glaucio Gil, em Copacabana, “Folhetim” custa R$ 35,00 e pode ser adquirida por reembolso postal (folhetim@pequenogesto.com.br). No dia 23, o Pequeno Gesto entrou em cartaz com seu espetáculo mais recente, “AntígonaCreonte”, que será apresentado até segunda-feira. Trata-se de uma adaptação livre da tragédia de Sófocles pelo diretor Antonio Guedes, com quem Fátima compartilha duas décadas de grupo e 13 anos de revista, dois atos de resistência filosófica e artística.