Reportagem
17.3.2012 | por Valmir Santos
O encenador Antunes Filho, no CPT, o Centro de Pesquisa Teatral responsável pela formação de novos profissionais do teatro, que completa 30 anos: “O ator tem que saber que é artista, intelectual, não funcionário do palco”.
Valor Econômico, Caderno Eu&, 13 de fevereiro de 2012, p. D1.
Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo
No fim da peça “Nossa Cidade”, do americano Thornton Wilder (1897-1975), um homem já morto compartilha com uma mulher – cujo coração também parou de bater e o fluxo da dramaturgia a faz retornar – o aprendizado de que existir é “mover-se dentro de uma nuvem de ignorância”.
O texto que Antunes Filho vai montar neste ano, no marco dos 30 anos do espaço de formação de novos atores que coordena em São Paulo – o Centro de Pesquisa Teatral (CPT) -, possui conteúdos e estruturas que refletem uma visão sobre o trabalho de ator e a cena que o envolve: “O ator tem que saber que é artista, intelectual, não funcionário do palco”. A postura do diretor rendeu espetáculos marcantes, como “Macunaíma” (1978), que deu origem ao Grupo Macunaíma; “Nelson 2 Rodrigues” (1984); “Gilgamesh” (1995); e “Fragmentos Troianos” (2000).
“Nossa Cidade” inspira Antunes a criticar a ascendência da cultura de massa e, como cidadão, a perceber com ceticismo o crescimento econômico do Brasil, para o qual sobra “orgia” e falta realidade. Ele mesmo um iconoclasta diante da expressão em arte, da recepção crítica, do sistema de cultura do país e dos comportamentos da sociedade, Antunes trabalha na livre adaptação de “Nossa Cidade”, narrativa conduzida pelo Diretor de Cena, espécie de semideus a pairar sobre as miudezas cotidianas dos moradores de uma pequena cidade no pico de uma colina.
Os três atos da obra de Wilder compreendem os primeiros anos do século XX e perpassam a juventude, o casamento, o estalo da finitude e o revisionismo do caráter, das atitudes e escolhas que pontuaram o tempo de homens e mulheres da classe média americana conservadora e protestante. Quando a personagem da garota aniversariante indaga aos mortos se alguma criatura pode compreender a vida enquanto vive, o Diretor de Cena responde: “Não. Os santos e os poetas, talvez, um pouco”.
Um dos principais renovadores do teatro brasileiro, aos 82 anos Antunes Filho alimenta a mesma obstinação pelo palco assimilada desde o fim dos anos 1950, quando era aprendiz dos diretores estrangeiros do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, companhia que marcou a experiência moderna no país.
Leia, a seguir, os principais trechos de entrevista concedida ao Valor, na sede do CPT, no bairro da Consolação, em São Paulo.
Valor: Qual a filosofia consolidada pelo CPT nesses 30 anos?
Antunes Filho: O ator tem que saber que é artista, intelectual, não funcionário do palco. Essa é a nossa força no CPT. O meu processo é libertário: liberta das amarras do mal profissionalismo, da má informação. Transmitimos a problemática sobre as artes. Não é simplesmente o palco, mas trabalhar filosófica e moralmente o que significa ser ator.
Valor: Desde o fim dos anos 1990, o CPT deixou de ser um espaço indevassável. As peças das jornadas “Prêt-à-Porter” [formada por três cenas] e a sua postura de delegar a direção e a dramaturgia aos discípulos contribuíram para isso?
Antunes: Claro. Ele [aponta para Emerson Danesi, que o acompanha] é mais responsável pelo “Prêt-à-Porter” do que eu. Ele é o pai, que leva adiante. Passei para ele, mas fico em cima, encho o saco [risos]. A fase anterior era de depuração das técnicas e conteúdos desses anos todos. Era necessário o entendimento para fazer com que as engrenagens se combinassem, se encaixassem completamente. Agora, temos a tese, a antítese e a síntese. E mais algumas coisas [risos]. Somos mais afetados e interessados pelo mundo lá fora. A gente escuta.
Valor: Como se dá o trânsito de um aprendiz do curso do CPT para os espetáculos do Grupo Macunaíma? A rotatividade de atores é um problema para o núcleo?
Antunes: Sempre fica alguém para passar a experiência aos demais. Houve os atores Cacá Carvalho, o Luís Melo, a Juliana Galdino… Sempre tem que ter uma espécie de peixe-guia. Quanto ao curso, a gente provoca os participantes a criar para o “Prêt-à-Porter”. A prova se dá na cena, vemos os melhores. Nem todo mundo tem talento igual. Talento é gradativo, dá muito trabalho. Imagine que uma cena curta pode levar até oito meses para ficar pronta.
Valor: Como vão as pesquisas para a peça “Nossa Cidade”?
Antunes: Estou trabalhando numa adaptação mais ou menos livre, uma coisa meio Derrida [filósofo francês Jacques Derrida, 1930-2004], meio desconstrução, um diálogo com a própria peça, o autor [Thornton Wilder].
Valor: A figura do Diretor de Cena, o olhar para o mundo a partir da província: “Nossa Cidade” possui elementos que instigam em relação ao trabalho que virá…
Antunes: Estou em processo. Sei que é um diálogo com Thornton Wilder. Sei que era um cara legal, ele tem uma tendência crítica muito suave. Afinal de contas, ele está falando também dos EUA, o país mais rico do mundo. Mesmo com a crise econômica, os EUA seguem mandando.
Valor: Como o senhor percebe o crescimento econômico do Brasil?
Antunes: Na hora que o Brasil levar uma fubecada, aí vamos acordar. Porque você viver da terra, do petróleo, da agropecuária é uma coisa. Agora, não estou vendo o Brasil industrialmente em progresso. Não estou vendo as estradas rodoviárias, todas são mal construídas. Nosso superávit, o PIB, vem de onde? Vem da terra e do petróleo? O que estamos fabricando? Nós vendemos a matéria-prima para eles e compramos depois o produto feito? É de uma imbecilidade total. Nós estamos ferrados, bicho.
Valor: Nos bastidores de Brasília, a substituição da ministra da Cultura, Ana de Hollanda, é uma especulação. Um dos cotados seria o diretor regional do Sesc-SP, Danilo Santos de Miranda, que institucionalizou o CPT…
Antunes: Não quero que ele vá.
Valor: Mas ele já declarou refletir sobre essa possibilidade.
Antunes: Sabe por que acho que ele não vai aceitar? Os altos escalões são muito ciumentos e vão criar muita encrenca. Ele vai perder tempo e se desgastar com bobagens pessoais. No Sesc, não, ele está desimpedido. Por que vou cortar as asas dele se ali ele pode ser mais útil para a cidade, para o Estado, para o país?
Valor: O senhor acha que o problema da política cultural no Brasil é de gestão?
Antunes: Você vê o estado de corrupção que o país vive. O protecionismo que existe. A corrupção não é brasileira, mas internacional. O Brasil está num momento perigoso. A turma está numa euforia louca e numa inadimplência louca. Vivemos numa das quatro cidades mais caras do mundo. A realidade não foi contada, a ficha não caiu. Uma hora ela vem. Essa orgia não é eterna.
Texto complementar na edição on-line do mesmo dia:
Neste ano, 700 atores se candidataram às 20 vagas do curso
Por Valmir Santos | Valor Econômico
O Centro de Pesquisa Teatral oferece um curso gratuito e anual de introdução ao método de ator sistematizado por Antunes Filho e seus discípulos ao longo desses 30 anos. Em 2012, foram cerca de 700 inscritos (35 para cada uma das 20 vagas), 310 deles chamados para entrevistas após análise de currículo. A maioria dos interessados vem de faculdades ou escolas de artes cênicas de São Paulo: Unicamp, ECA-USP, Idac, Célia Helena e Escola Livre de Teatro de Santo André.
O espaço é mantido desde 1982 pelo Serviço Social do Comércio, o Sesc-SP, no sétimo andar da unidade Consolação da capital paulista. Já passaram por lá artistas como Luís Melo, Giulia Gam, Marco Antônio Pâmio, Silvia Lourenço e Juliana Galdino.
Antunes diz que esses 30 anos serviram para depurar as técnicas e conteúdos necessários ao entendimento da engrenagem teatral acionada por estudos e estados do corpo, da voz, da filosofia, da espiritualidade, da metafísica e demais variantes. “Hoje, quando tratamos de um tema ou de uma teoria conseguimos estabelecer vínculos facilmente com outras áreas. Antigamente, isso era parcial, não tínhamos o outro lado. Faltava dialética. Agora, temos a tese, a antítese e a síntese. Somos mais afetados e interessados pelo mundo lá fora. A gente escuta”, afirma.
O ator e diretor Emerson Danesi, que trabalha com Antunes há 15 anos, conta que as atividades pedagógicas correspondem também a um laboratório para compor elencos dos espetáculos do Grupo de Teatro Macunaíma, núcleo cooperativo batizado assim após a recriação cênica do diretor para a rapsódia “Macunaíma”, de Mário de Andrade, estreada em 1978. Recentemente, ele adaptou mais dois romancistas brasileiros, Ariano Suassuna (“A Pedra do Reino”) e Lima Barreto (“Policarpo Quaresma”).
Outra demanda do CPT é a série “Prêt-à-Porter”, que vem possibilitando aos egressos dos cursos, a partir 1998, criar peças curtas nas quais são responsáveis por conceber desde os figurinos e objetos de cena até a dramaturgia, tudo sob supervisão de Antunes. Já aconteceram dez edições, cada uma delas abrigando três textos. Essas jornadas viraram o xodó de Antunes, homem teatral até nas falas e gestos: “Às vezes tenho que ser duro para ajudar, não para exercer poder. Posso errar, mas estou a toda. Não paro. Eu tenho que honrar o teatro”.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.