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Reportagem

Bogotá – Peeping Tom

12.4.2012  |  por Valmir Santos

A companhia foi criada em 2000 e seu quarto espetáculo, 32 rue Vandenbranden (2009), talvez seja o que melhor traduza filosófica e cenicamente o seu nome: Peeping Tom. Segundo a lenda britânica de Lady Godiva, do século XXI, a mulher do administrador de uma cidade pedia a ele para baixar os impostos dos camponeses e o marido só o fez sob a seguinte condição: se desfilasse nua sobre um cavalo. Abraçada à causa, lá foi ela. Calhou de Peeping Tom ser o único par de olhos masculino a mirar aquele corpo, ainda que sob as frestas de uma janela, e por isso perdeu a visão. A condição de voyeur é trabalhada no palco sem o automático enquadramento temático e formal do cinema, mas fazendo uso dessa linguagem em sua transcendência pelas imagens, pela atmosfera etérea, conduzindo o espectador a uma viagem original em procedimentos da dança e do teatro rumo à ascese.

O roteiro de ações físicas é inspirado no filme japonês A balada de Naraiama (1983), de Shohei Imamura, aquele de imagens dilacerantes, como a do filho carregando a mãe nas costas, abraçados pelo vento, subindo a montanha para pousá-la no cume até a morte, como reza a tradição local de que todo septuagenário deve ter igual destino. No mesmo vilarejo do final do século XIX, pais costumavam vender bebês para sobreviver. Essas misérias material e espiritual não aportam literais no palco. Antes, são essencialidades que tornam o espetáculo um fabuloso poema visual escrito no e com o corpo e o espaço cenográfico. A música também é celebrada à altura, com instantes como a suíte O pássaro de fogo, de Stravinski, e a canção Shine on you crazy diamond, da banda Pink Floyd.

Pode haver melodia e letra mais clichês para apoiar um movimento em dança ou uma cena no teatro, em 2012, do que um hit da banda inglesa de rock progressivo explorada em muitas criações? Pois na sequência em que a soprano Eurudike De Beul canta, o ouvido, o coração e o olhar do espectador convergem para o sentimento de abandono que toma conta dos seis moradores das casas adaptadas em trailer ou contêiner na encosta de uma montanha, uma paisagem de nuvens escurecidas em que o chão e os tetos estão forrados de neve. É do alto de uma dessas moradias que Eurudike posiciona-se, pairando sua voz, como se dos céus, sobre a cabeça de homens e mulheres quem brincam feito crianças ou digladiam como se estivessem numa arena de feras.

A concepção dos diretores Gabriela Carrizo e Franck Chartier valoriza a gestualidade existencial tragicômica para uma narrativa convencional: forasteiros chegam a uma comunidade de códigos cerrados e contaminam seus habitantes da mesma forma que são contaminados por solidões, medos, violências, desconfianças, paixões, recalques e alguma solidariedade difusa. À noção fluída de coreografia na qual a virtuose dos solos não os isola, a obra avança também para uma dramaturgia de subtextos, assinada pela dupla Nico Leunen e Hildegard de Vuyst. A sobreposição de imagens de fundo e de primeiro plano concede ao público autonomia em sua percepção da narrativa.

Há um componente sensorial no ato de observar as cenas de corpos em contínua transmutação para traduzir diálogos silenciosos, conflitos passionais, invejas de vizinhança, rasgos emocionais, o amor de perdição. O talento do núcleo de dançarinos e atores-criadores desenha essas figuras flutuantes e pesadas com recursos que suscitam a linguagem do circo (contorcionismo, ilusionismo) ou da dança butô japonesa no lirismo e na treva.

O tipo físico dos artistas reflete suas nacionalidades: Jos Baker é britânico; Seoljin Kim e Hun-Mok Jung, sul-coreanos; Sabine Molenaar, holandesa; Marie Gyselbrecht e a cantora Eurudike De Beul, belgas. Os diretores Gabriela e Chartier também são de nacionalidades distintas: ela é argentina e ele, francês. Todos radicados na Bélgica, país fértil em trabalhos referencias nas artes cênicas do mundo (Needcompany, Rosas, les ballet C de la B, Ultima Vez, etc). Boa parte desses criadores integrou algumas dessas companhias. Curiosamente, a dançarina brasileira Maria Carolina Vieira, ex-integrante do grupo catarinense Cena 11 [ela segue vinculada ao núcleo, comenta abaixo], passou por audição da Peeping Tom em fevereiro e agora compõe o elenco do espetáculo em revezamento com Sabine, que dançou em Bogotá [quem dançou foi a própria Maria Carolina, ela me corrige abaixo]. Tendo estreado seu quinto espetáculo no ano passado, A louer (para alugar), a companhia permanece inédita no Brasil, uma pena.

Um dos trunfos da Peeping Tom é expressar fortemente o rosto dos seus corpos, rosto ao ar livre ou emoldurado pelas janelas e luzes interiores das casas, humanizando a técnica não como fim em si mesma, mas ponte para uma fábula de alcance universal e em nada facilitadora, a constatar a complexidade/perplexidade dos seres em jogo. E na vida: o espetáculo é dedicado à dançarina, atriz e poeta Maria Otal (1927-2009), que colaborou com a criação e morreu dez dias antes da estreia. Atuar é sempre uma cerimônia de adeus.


 

>> O jornalista viajou a convite da organização do festival e do Instituto Distrital de Turismo de Bogotá.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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