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Reportagem

Vertigem leva arte política às ruas de SP

26.6.2012  |  por Valmir Santos

A atriz francesa Laetitia Augustin-Viguier na intervenção - Flavio Morbach Portella

A atriz francesa Laetitia Augustin-Viguier na intervenção – Flavio Morbach Portella

A rigor, as artes cênicas se ocupam do espaço público desde os povos primitivos, quando ainda nem havia essa definição moderna para elas. Saltando para os dias de hoje, com o verbo “ocupar” transformado em sinônimo planetário de indignação nas ruas devido às fraturas sociais, políticas e econômicas do capitalismo, esses sintomas também eclodem no campo artístico. Acostumado a levar suas peças a lugares não teatrais do Brasil e de outros países, o Grupo Teatro da Vertigem prepara em São Paulo uma intervenção urbana impregnada da urgência de sua época. Nesse novo projeto, marco dos 20 anos do núcleo, percebe-se que escuridão humana permanece alicerçando os materiais cênico e dramatúrgico que ganham vulto nas sombras da noite da cidade dilacerada pelo crack.

“Bom Retiro 958 Metros” religa o conceituado grupo de pesquisa à região central de São Paulo, onde “Paraíso Perdido” veio à luz em 1992, sob a arquitetura neogótica medieval da Igreja de Santa Ifigênia, vizinha ao largo do Paissandu. Após conceber espetáculos na área da avenida Paulista (ocupando uma ala hospitalar em “O Livro de Jó” e a fachada e o escritório de um prédio em “Kastelo”); na zona leste (um presídio desativado em “Apocalipse 1,11”); e na zona oeste (no leito, margens e pontes do rio Tietê em “BR 3”), os artistas adeptos da imersão em edifícios e espaços públicos voltam ao território expandido de origem.

Com estreia prevista para esta sexta-feira, “Bom Retiro 958 Metros” se propõe ao desafio de concatenar ações esparsas ao longo do percurso mensurado no título, revezando áreas cobertas e ao ar livre. O ponto de partida não deixa de ser outra modalidade de templo, o do consumo: uma galeria de lojas atacadistas no coração do bairro reduto da produção e comercialização de moda. Em seguida, as cenas deslizam para o asfalto, as calçadas e os cruzamentos, com o público compondo cortejo por cerca de duas horas. A peça culmina na ocupação de um edifício teatral hoje fantasmagórico, outrora palco da visão progressista de imigrantes convictos de que a cultura é um braço de justiça e cidadania.

A arte política do Vertigem não se quer monolítica. Ao circunscrever o Bom Retiro fashion, do frenético comércio popular, dos desvios trabalhistas na cadeia do setor de confecções, da babel étnica, enfim, o grupo incide sobre as feridas da cidade e as contradições do momento socioeconômico brasileiro.

O romancista e poeta cuiabano Joca Reiners Terron, radicado na capital paulista desde 1995, topou experimentar a dramaturgia pela primeira vez em fricção com o diretor Antônio Araújo e toda a equipe de criação que já investigavam a memória do bairro desde 2010. O autor de “Eletroencefalodrama” (1998) e de “Guia de Ruas Sem Saída” (2011), entre outros livros, conheceu o mesmo processo de escrita em colaboração vivido pelo colega e outrora neófito em teatro Bernardo Carvalho, que assinou “BR-3”.

Foram pelo menos três meses de convivência diária com 15 atores em sala de ensaio levantando subsídios a partir de improvisações. O texto funde personagens e espectros que vagueiam insones na madrugada. A esmo ou no batente em oficinas de costura, na limpeza do “doping center” (expressão pichada na rua) ou no manejo de mercadorias para os estoques da liquidação planejada para o dia seguinte.

Mas antes da queima total, outras chamas vão pontuar os fragmentos e microconflitos que têm proximidade ainda com a formação histórica do Bom Retiro desde o início do século XX, suas gerações de judeus, italianos, gregos, sul-coreanos, bolivianos e outras ascendências.

O fim de noite cessa o burburinho dos compradores e impõe o silêncio de ouvir os passos, cortado de vez em quando pela locutora da rádio a modular a longa jornada. Alguns carregadores realizam entregas ou retiradas. Há uma consumidora desesperada em busca do vestido vermelho que paquera na vitrine e reclama das lojas fechadas a essa hora. Interpretada por Luciana Schwinden, ela é uma das vozes condutoras dessa fábula em retalhos.

Mawusi Tulani é a faxineira filósofa em 'Bom Retiro 958 Metros' - Flavio Morbach Portella

Mawusi Tulani é a faxineira filósofa em ‘Bom Retiro 958 Metros’ – Flavio Morbach Portella

Outra presença decisiva é a da faxineira filósofa vivida pela atriz Mawusi Tulani. Graciosa e sagaz, ela diagnostica o quanto os desejos alucinam as pessoas convertidas em manequins de fibra, o cúmulo da “coisificação” da vida.

E há ainda o “cracômano”, alcunha que parece triturar na boca de quem a pronuncia e diz respeito ao dependente químico. Roberto Audio responde pela performance dessa figura presa à pedra tal qual um Sísifo, vagando em pensamentos sobre o não lugar dos becos, muros e grades, enxotado pelo vigilante do shopping, agonizando com espantoso senso de realidade.

A ambientação de desfecho é um teatro privado histórico e há anos abandonado, tristemente apartado da sociedade. Revelar seu nome prejudicaria o hipertexto das cenas finais. Em suas dependências, o espectador é estimulado a montar as linhas de força costuradas até então. Ficam mais claros os contornos trágicos da ruína humana/urbana. Afinal, o que se vê no palco é o coro de uma superprodução musical ou a horda de homens e mulheres a pipar o crack? Sucedem imagens que remetem à decrepitude, ao higienismo, à especulação imobiliária. Mais uma vez o Teatro da Vertigem escancara janelas aos citadinos esquivos em ver, ouvir, tocar essas zonas mortas-vivas.

“Bom Retiro 958 Metros” aporta o movimento sincrônico deste início de década em que coletivos teatrais operam temas e formas a partir de bairros centrais de uma São Paulo convulsionada pela questão da sociabilidade. Essa consciência crítica é provocada por grupos como Teatro de Narradores, com o espetáculo “Cidade Fim – Cidade Coro – Cidade Reverso”, na Bela Vista; Companhia Pessoal do Faroeste, com “Cine Camaleão – A Boca do Lixo”, na Luz; da Companhia São Jorge de Variedades, com “Barafonda”, na Barra Funda; e do Folias d’Arte, com “A Saga Musical de Cecília desde Priscas Eras Até os Dias de Hoje no Pedaço de Terra Dividida que Carrega o seu Santo Nome”, em Santa Cecília.

No encontro do teatro com a cidade, o espectador e morador depara com esse espaço comum multiforme e precário a ser reinventado e reimaginado.

Bom Retiro 958 Metros
Ponto de encontro: Oficina Cultural Oswald de Andrade – r. Três Rios, 363, SP, tel. para informações: (11) 3255-2713 ; de qui. a sáb., às 21h; dom., às 19h. R$ 30. De 15/6 a 30/9. A produção recomenda ir com sapatos confortáveis e sem bolsa ou sacola; em dias de frio, ir agasalhado; em caso de chuva, a intervenção é cancelada.

Valor Econômico, 12/6/2012, Caderno Eu & Cultura (p. D4)

Em “Bom Retiro 958 Metros” grupo questiona contradições socioeconômicas. Por Valmir Santos, para o Valor, de São Paulo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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