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Crítica

Bogotá – Mapa Teatro

27.7.2012  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: admin

Em sua jornada pelo imaginário social da Colômbia, desde 1984, o Mapa Teatro toca agora numa fratura exposta não só naquela sociedade, mas especialmente nos territórios vizinhos sul-americanos: o narcotráfico. O espetáculo mais recente do grupo, Discurso de un hombre decente, estreou em dezembro de 2011, em Bruxelas, e foi apresentado em terra natal na semana passada, dentro do Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá, seu coprodutor.

O “homem” do título é o traficante Pablo Escobar, chefe do cartel de Medellín, morto em 1993. E o “discurso” tem sua gênese no bilhete encontrado no bolso de sua camisa quando assassinado, documento retrabalhado à luz da ficção na dramaturgia também concebida pela dupla de diretores Heidi e Rolf Abderhalden.

Se o chileno Guillermo Calderón escreveu em Villa+discurso uma mea-culpa fictícia para o último dia de governo da ex-presidente socialista Michelle Bachelet, o Mapa Teatro propõe um texto de posse presidencial para um dos inimigos públicos históricos do país.

O seguinte trecho da narrativa divisa o sarcasmo como recurso de criticidade: “Compatriotas: Me llamaban el monstruo, el loco, el Robin Hood criollo, el patrón, el papá. Hoy me llaman presidente y tengo una única certeza, soy el personaje más importante del mundo…. después del papa”.

Como demonstrado em espetáculos conhecidos do público brasileiro (Testigo de las ruínasLos santos inocentes), o manejo do que é ou não realidade extrapola a plataforma do texto e vai à cena na incorporação de não-atores, inclusive homens ou mulheres vinculados aos episódios abordados.

Uma dessas “fusões” extraordinárias está na presença no elenco do maestro Danilo Jiménez, encabeçando o conjunto musical Marco Fidel Suárez com seus sopros e baixos sustentadores de uma típica orquestra popular interiorana do país de García Márquez. Pois nos tempos de Escobar, Jiménez foi vítima de um atentado a bomba em Medellín, onde quase morreu. Ele ficou mudo por um bom tempo. Vê-lo tocar e cantar hoje, com seu fiapo de voz, é um exemplo de emoção compatível à narrativa que contempla fatos históricos com a liberdade que as artes cênicas requerem.

Ao rapper Jeihhco, ícone da cultura urbana de Bogotá, é dada a voz do narrador de microfone em punho, revezando espaço com um estudioso do narcotráfico convocado da universidade para contextualizar as sequelas, entrevistado por uma apresentadora de televisão estereotipada em seu poço de ignorância.

Já que a hipérbole corre solta em Discurso de un hombre decente – não raro a realidade é mais absurda –, o cenário é propositadamente poluído por vasos de plantas como a sugerir a selva amazônica. Esse coração das trevas e dos embaralhamentos fica envelopado a maior parte do espetáculo, atrás de uma tela inteiriça sobre a qual são projetadas imagens documentais.

Por trás dessa grossa camada de aparente falta de sofisticação nos dispositivos que lança no palco, o Mapa é incisivo ao chamar o espectador à autocrítica, a começar pela plateia colombiana e as dissimulações de um país que militarizou seu cotidiano, da região amazônica aos centros urbanos.
O espectador estrangeiro pode ter a sensação, em algum momento, de que os conteúdos são demasiado colombianos. Mas é demovido pela extensão universal dos poderes colocados em xeque.
A nova performance do grupo elabora contravenções cênicas que desviam da representação. Escoa um presente mais paupável, como se os corpos de uma fotografia se desgarrassem do papel para dar seu testemunho.
Para quem acompanha o Mapa Teatro apenas a partir da década passada, intuímos que o livro cênico da história contemporânea que escreve e reescreve dispensa o manifesto declarado e concentra-se na arte como veículo autônomo das ideias e ideologias visitadas. Seus espetáculos são sempre uma celebração ao teatro por caminhos nada convencionais. Ou ainda uma sublimação das urgências colombianas no encontro da cena com o público, construindo e revolvendo memórias.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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