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Reportagem

Fenart – Carta aberta ao palhaço Pirulito

6.8.2012  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Foto divulgação

Prezado Pirulito, saudações cênicas. Foi bom ver o circo contemplado na programação do Fenart. Essas artes têm muito em comum, palco e picadeiro se emendam. E sua Trupe de Teatro e Circo Pirulito indica beber dessa tradição. Pena que o espetáculo Um, dois, três… conto outra vez não faz jus ao conceito de pesquisa que vocês anunciam no final. Pesquisa, com “P”, não daria em apresentação tão mediana e gratuita em algumas soluções, como a de cuspir água sobre mãe com criança no colo. À figura do palhaço não cabe regras, esse homem-bomba do riso, como diria Hugo Possolo, o Tililingo dos Parlapatões, Patifes & Paspalhões. Mas bom senso na relação com o público mirim é o mínimo que se espera do artista.

A triangulação entre dois palhaços e o dono do circo ou mestre de pista é uma estrutura bastante convencional e, quando bem-feita, ninguém tasca. Aqui, ela aparece como mero pretexto para o desfile de Pirulito e Coceirinha, respectivamente você, Ismar Pompeu , e seu colega ator Jackson Lima.

O prenúncio instiga: dois palhaços e músicos ambulantes batem à lona o circo Allem em busca de emprego. Eles têm que provar seus dotes artísticos e encontram uma série de dificuldades, natas e alheias. No cenário, a lona colorida ao fundo, o nome do circo em sua grafia esquisita emoldurado por luzinhas, um quê bucólico e despojado. A bolha de sabão, no entanto, espoca logo.

No material de divulgação enviado ao crítico, a pedido deste – faria bem ao Fenart um programa específico para a mostra de teatro, com sinopse e fichas técnicas dignas -, aparece no elenco o nome do diretor do espetáculo, Kleber Marone, quando quem estava em cena era outra pessoa despreparada para o ofício, contraste gritante com a presença da dupla de palhaços. Essa quebra de eixo já denota o descaso para com a arte que dizem abraçar; no caso, mais grave ainda porque conjugação de duas artes, ou seja, de compromisso e desafios em dobro.

Juntar circo e teatro só para justificar a animação de festas infantis ou eventos afins, como consta no seu currículo, infelizmente desvirtua a formação do olhar para o picadeiro e o palco. E Pirulito, Coceirinha e seu dono e mestre de pista passam o tempo todo nessa lengalenga com essas artes, sem nenhuma pinta de que efetivamente pesquisaram a fundo.

Você, Pirulito, é um artista carismático e com recursos para fazer par com as correntes mais importantes da “palhaçaria” brasileira: Piolin, Picolino pai e filho, Queirolo, Arrelia, Carequinha e a dupla mais contemporânea do grupo La Mínima, Domingos Montagner e Fernando Sampaio, entre outros. Seu parceiro Coceirinha carece mais jogo de cintura. Quem sabe, a química poderia melhorar caso explorassem a anteposição das máscaras do augusto (liberto), você, e do branco (correto), ele. Como estão, nivelados no roteiro, redundam.

Com esse Um, dois, três… conto outra vez, acolhido em seus primeiros passos no Projeto Ensaio, a percepção é de que a trupe de fato intenta dialogar com a tradição, com esquetes que atravessam gerações. Aos cinco anos de história, porém, o trabalho da vez reflete pobreza de linguagem, um estágio constrangedor para quem alega pesquisar o circo há pelo menos meia década, supomos.

Falta sutileza para sustentar o olho no olho com o espectador, para construir de fato um clima de suspensão poética, de cadinho trágico que também se entrevê no rosto dos grandes palhaços, aquela atmosfera que os filmes de Fellini comunicam tão bem. O tempo de abrir a bolsa do violão e deparar com o instrumento todo em frangalhos não pode ser ansioso, atropelado, sem brecha para o conteúdo dramático da situação. Pirulito e Coceirinha passam por cima do violão com a mesma ânsia que os conduzem até o fim, um destrambelho que perde a graça porque mecânico. A direção é desatenta a essas e outras cadências.

Pois, Pirulito, fica aqui a esperança de que o espírito circense realmente aplaque a alma dos seres vivos que cohabitam a lona de sua trupe. Não se contente com pouco: essas arapucas da sobrevivência em animações deixam o palhaço sem moral junto ao público, vira palhacinho, vide a excrescência Ronald McDonald’s, que periga sinônimo de palhaço, sinta o drama! É preciso perguntar-se a fundo sobre as suas razões humanísticas e artísticas, mergulhar – com rede e às vezes sem – na pesquisa que prenuncias, base para a técnica e a utopia que move as mulheres e os homens de circo em todos os tempos e lugares do planeta.

Nesta semana, quis o acaso, escrevi um artigo para um jornal paranaense, Gazeta do Povo, que versava sobre a relação circo e teatro. Encerrei o texto com a lembrança de que Piolin cativou os participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, provando que ser palhaço é uma condição criadora sofisticada e exigente. Lá estavam Tarsila do Amaral, Pagu, Oswald de Andrade e Mario de Andrade. Sobre essa arte milenar, o autor de Macunaíma escreveu: “Só no circo ainda tem a criação, porque as próprias circunstâncias de liberdade sem restrições e de vanguarda desses gêneros dramáticos permitem aos criadores deles as maiores extravagâncias”.

Em João Pessoa, colaboração para a coordenação de teatro do XIII Festival Nacional de Arte

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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