Reportagem
5.9.2012 | por Valmir Santos
Os vínculos umbilicais em Mãe coragem e seus filhos fazem da peça escrita em 1939 um exemplo bem-acabado de como Bertolt Brecht trata a emoção sem necessariamente esterilizá-la em busca da perspectiva crítica do espectador.
A austeridade formal na encenação de Claus Paymann, diretor artístico do Berliner Ensemble, amplia a lente sobre a desumanização em tempos de guerra, adensada pela atmosfera musical de Paul Dessau. Desde o início, o palco vazio e a circunferência central inclinada para a plateia deixam claro que a plataforma de voo ali é dos atores.
O corpo miúdo de Carmen-Maja Antoni contrasta a brutalidade do mundo que a personagem-título carrega em seus ombros para além da carroça cenográfica, morada familiar e comércio ambulante a cortar a paisagem de misérias feito um road movie.
Impossível não ser tocado pela narrativa em que a matriarca vê sua prole tombar violentamente, um a um, sem que a realidade da guerra a demova do próprio cinismo. Por mais que os olhos marejam, o coração é pétrio na percepção de que alguém há de faturar algum, sempre, não importa a irracionalidade nos dois lados do front.
Não bastasse o protagonismo sublime de Carmen-Maja, há 36 anos na companhia, os demais intérpretes surgem equilibrados em seus talentos e técnicas vocais e corporais, não importa a geração.
O subtítulo original da peça, Crônica da guerra dos trinta anos, situa a ação no século XVII, com os conflitos religiosos e monárquicos na transição europeia do feudalismo para a idade moderna. A atemporalidade, porém, serve a outras leituras na época em que o texto vem à luz, na Segunda Guerra Mundial, ou produzido agora, no século XXI, com a cada vez mais disseminada lógica da indústria bélica e seu desprezo homérico por civis.
Brecht viveu pouco, 58 anos, mas atravessou duas Guerras Mundiais. Escreveu Mãe Coragem no exílio, obra-prima reflexo desses estilhaços como muitos dos versos e histórias vertidos de sua pena.
A montagem de 2005 encarna a memória do conjunto e de seu cofundador sem conformar-se com a aura das fotografias em sépia. Os traços épicos e dialéticos são divisados em 2012 em sintonia com o campo da excelência artística.
Há cerca de sete anos, quando adentrei o mítico edifício acinzentado da antiga Berlim Oriental para assistir à montagem de Mãe coragem, não dominávamos a língua alemã falada em cena. Fomos conduzidos, portanto, pela intencionalidade não verbal, arrebatados pelo legado universal do pensamento artístico-político de Brecht, Helene Weigel e seus parceiros de utopia.
Um legado que possibilita sessão no meio da tarde de uma segunda-feira, tendo como público-alvo as mães que podem deixar seus bebês na creche ao lado do teatro. Um legado que dissolve a mitificação quando alguns atores, ainda caracterizados, tomam cerveja na cantina do Berliner Ensemble misturando-se ao público durante o intervalo. Eis o estado natural da cultura e da arte do teatro que toda a humanidade merece. Por isso antológicas, desde já, as três noites que virão no Theatro São Pedro, um feito e tanto do Porto Alegre em Cena.
(texto originalmente publicado na edição de 4 de setembro de 2012 do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, Segundo Caderno, p. 1)
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.