Reportagem
25.10.2012 | por Valmir Santos
Foto de capa: João Caldas
O anglicismo no nome artístico de Ron Daniels condiz com os cerca de 30 espetáculos de Shakespeare em seu currículo. Fluminense de Niterói, Ronald Gomes Daniel vive fora do Brasil há 48 anos. Na Inglaterra, o então jovem ator foi logo alçado a diretor, ofício maturado em quase três décadas de trabalhos junto à Royal Shakespeare Company, uma das mais prestigiadas do Reino Unido. Em 1997, ele se mudou para os EUA, onde esteve associado por anos à companhia American Repertory Theatre. Atualmente, como profissional freelancer, tem peças e óperas na agenda até 2014.
Daniels é pouco conhecido do espectador brasileiro. Esteve vinculado ao grupo Oficina em 1959, na fase de formação. Sua primeira criação aqui só aconteceu em 2000: Rei Lear, protagonizada por Raul Cortez (1932- 2006). Doze anos depois, o diretor volta a São Paulo com outro Shakespeare, Hamlet, ancorado por Thiago Lacerda e amparado por atores de elogiada trajetória, como Antonio Petrin, Selma Egrei, Roney Facchini, Marcos Suchara e Anna Guilhermina, entre outros. A temporada começa amanhã no Tuca, em São Paulo.
“Faço teatro como um padeiro faz pão”, diz Daniels. “É um trabalho artesanal, cuidadoso, caloroso, que não exige para si nenhum privilégio, nenhuma desculpa. Eu trabalho, e meus atores também, para fazer um espetáculo bonito, empolgante, que tenha qualquer coisa a dizer sobre nós mesmos.”
No primeiro dia de ensaio, o elenco ficou surpreso diante da autodeclarada “falta de certezas” do diretor. Afinal, Daniels já montara “Hamlet” ao menos quatro vezes, inclusive numa versão em japonês, ou seja, conhecia a pulsação das cenas nas entrelinhas. Pois ele colocou a bagagem de lado e convidou os 15 atores a se apropriar do texto como se fossem “reescrevê-lo”, em nome de um ponto de vista autoral dos homens e mulheres embarcados no projeto. Isso não significou subverter a dramaturgia mantida em essência nas duas horas e 20 minutos de espetáculo, em cotradução do diretor e de Marcos Daud.
Antes de propor algo, Daniels deseja ser surpreendido. “Ele entende o que significa um ator. Estou cansado de trabalhar com pessoas que ignoram a importância do ator. Em 14 anos de carreira, já passei por situações de ouvir de quem dirige que ‘ator é tudo problemático’, quando na verdade é o contrário”, diz Thiago Lacerda. “O Ron entende isso, joga junto, cria simbiose entre as cabeças envolvidas.”
Escrita entre 1600 e 1602, Hamlet flagra os tormentos do príncipe empenhado em vingar o assassinato do pai pelo tio. Shakespeare inspirou-se numa lenda dinamarquesa do século XII para compor um retrato irretocável da ambição humana desmedida pelo poder. E o fez com genialidade que pode soar como thriller em 2012 sem prejuízo de seu conteúdo profundamente filosófico quanto à ambiguidade, à contradição dos movimentos perpetrados no tabuleiro pelo jovem príncipe, pelo rei morto (fantasma), pelo rei posto (tio), pela rainha, por conselheiros, cortesãos, soldados, atores de uma trupe ambulante etc.
Quando um dos homens da guarda do palácio grita da plataforma “Quem está aí?”, primeira fala da noite, está lançada a chave para a leitura existencial do texto, na percepção de Ron Daniels. “Hamlet está atrás da verdade, de si mesmo. A pesquisa desse mistério, de sua humanidade, é o que me interessa muito em Shakespeare”, diz.
O diretor pretende iluminar ainda aspectos do humor em pleno material trágico, o que Lacerda confessa não ter enxergado nas ocasiões anteriores em que leu o clássico. “Mas tampouco é uma graça, uma fanfarrice. É um humor absolutamente ácido, terrível”, afirma o ator. A passagem em que isso fica mais evidente é quando Hamlet recebe o grupo de comediantes que vai interpretar a cena do assassinato do pai. Hamlet encarna a figura do palhaço a ciceronear a nobre plateia palaciana na “armadilha” que denuncia o crime do tio-padrasto por meio do teatro dentro do teatro.
Em sua primeira incursão pela obra shakespeariana, Lacerda diz ter a impressão de estar diante de um personagem “impossível”, mesmo tendo feito o excêntrico Calígula na peça homônima de Albert Camus encenada por Gabriel Vilella em 2008.
“Não existe um Hamlet, existe o Hamlet, o meu Hamlet, e não acho que qualquer coisa que faça seja original. Certamente, já foi feita, tentada, pensada em algum momento”, diz o ator. “Isso é o menos importante. Não tenho certeza sobre nada, assim como o Ron. O que temos são caminhos apontados, convicções nas escolhas e na ideia de contar essa história de uma forma muito simples. Acho que isso vamos conseguir.”
Hamlet
De sex. a 16/12, no Tuca (r. Monte Alegre, 1.024, Perdizes, SP). Ing: R$ 40 a R$ 60. Sex. e sáb. (21h); dom. (19h). Informações: (11) 3124-9600.
(texto publicado originalmente na seção Eu&Cultura do jornal Valor Econômico de 18/10/2012, p. D6)
Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.