Reportagem
15.1.2013 | por Maria Eugênia de Menezes
E um tempo de promessas não cumpridas. Reality shows garantem flagrar a vida real. Relacionamentos virtuais são vendidos como uma maneira de diminuir distâncias – e riscos. Alardeia-se que o teatro tenha restado como resquício de épocas mais delicadas, “arte do encontro” entre ator e público. “Mas o que se apresenta hoje praticamente prescinde da plateia, não é mais do que um simulacro”, acredita Pedro Cardoso. “A possibilidade do encontro está falseada pelo formalismo do negócio em que o teatro se transformou. ”
Foi tomado por esse incômodo que Cardoso, ao lado de Graziella Moretto, criou Uãnuêi, espetáculo no qual o espectador é quem decide o que quer assistir. “Não nos identificávamos com essa situação, em que a plateia foi reduzida a mera pagante e ocupante de um lugar”, considera Graziella. “Fechada a cortina, as pessoas vão para suas casas e nós retomamos nossas vidas. Desprovidos daquilo que esse encontro poderia promover. ”
Na peça, que abre temporada em São Paulo na sexta-feira, os dois intérpretes sobem ao palco sem saber o que irão representar. Não existe roteiro, texto, diretor ou figurino. “Só temos certeza que vamos cumprimentar as pessoas quando entraram no teatro e, ao final, conversar com elas sobre o que viram. Nisso consiste toda a nossa dramaturgia”, diz o ator.
Na verdade, existem outras poucas coisas determinadas de antemão. Entre a saudação inicial e o debate que encerra a noite, serão apresentadas duas cenas: a primeira, um improviso a partir de um tema definido pela plateia. A seguinte é escolhida pelos próprios atores. Porém, surge também no presente, sem combinação prévia, como um desdobramento da situação que foi vista no início.
Há muito o improviso permeia a trajetória de ambos os intérpretes, que são casados na vida real. Improvisar, contudo, sempre havia sido uma maneira de se alcançar um resultado, ferramenta para se chegar a um produto final, acabado. Agora, o que muda é o status do improviso, que deixa de ser meio e se torna o fim em si. “Tornou-se o nosso meio de reencontrar o encontro”, brinca Cardoso. “Mas, além disso, também adquiriu para nós um valor como pesquisa de dramaturgia. ”
Ao longo da história da literatura, lembra ele, não faltam tentativas de capturar o impulso primeiro do artista, aquele dado espontâneo que costuma esvanecer. No início do século 20, o surrealista André Breton pregava o livre fluxo do inconsciente e defendia os “direitos da imaginação.
” Ao método de escrita, também aderiram poetas como Rimbaud e William Blake. Mais adiante, a geração beatnik também ambiciou formas menos amarradas de criar, sem o crivo do planejamento e da organização. Título reverenciado de Jack Kerouac, On The Road foi escrito assim: concebido de fôlego só, em apenas três semanas. “Acabamos nos deparando com coisas que jamais produziríamos se nos sentássemos para escrever. Situações que seriam certamente descartadas”, acredita Graziella. Para Cardoso, “é como se a espontaneidade fosse capaz de energizar as ideias, como se algo de original pudesse surgir quando estamos livres da poluição do conhecimento. Aqui, não estamos submetidos a nada, nem a nossa própria vontade. ”
Uma originalidade, e uma ânsia por liberdade, que a indústria do entretenimento acaba não abarcando. Enquanto discorre sobre Uãnuêi, o ator deixa transparecer seu descontentamento com as formas industriais de produção que organizam hoje a arte, a televisão, o jornalismo.
Recentemente, Pedro Cardoso suscitou polêmica ao falar abertamente, durante um programa da Rede Globo, de sua visão crítica a respeito da ação dos paparazzi. “Fala-se que o leitor de determinada revista quer encontrar isso ou aquilo quando a compra. Isso quer dizer que, ao conceder uma entrevista para determinada publicação, ela irá me transformar em algo igual a ela? É uma loucura. ”
O espetáculo que ele encena agora não tem nenhuma relação direta com o episódio. Mas sinaliza, de certa maneira, suas posições dissonantes. Ao lidar com as sugestões do público para criar, a dupla de atores depara-se com temas cotidianos, relacionamentos familiares, conjugais, corporativos. Para cada uma dessas propostas, contudo, é possível encontrar um caminho único de se contar uma história.
“A fantasia humana tem muito mais possibilidades do que aquelas que a indústria do entretenimento formalizou. O modo de produção industrial é tão dominante no nosso tempo que mesmo aquilo que em sua essência é artesanal, tende a ser industrializado. É uma dominação que retira a liberdade do público, do jornalista, do artista.”
(Maria Eugênia de Menezes, Caderno 2, 27/11/2012)
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.