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Reportagem

Cacilda Becker, para não esquecer

23.8.2013  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Fredi Kleemann

Nossa memória é curta. O cronista Ivan Lessa definia bem essa particularidade nacional. Gostava de dizer que, a cada 15 anos, o brasileiro esquece os últimos 15 anos. Mas será possível esquecer Cacilda Becker (1921-1969)? Maria Thereza Vargas, reconhecida estudiosa do teatro brasileiro, acredita que sim. “Corremos esse risco”, diz. “É como se a imagem dela já estivesse se apagando.”

Cacilda Becker: uma mulher de muita importância é uma tentativa de manter nítidos os contornos dessa figura. No livro, lançado recentemente pela Imprensa Oficial, Maria Thereza recupera, com imagens, relatos e análises, os passos daquela que foi nossa atriz maior.

No Rio, em 1941, primeiro ano da carreira

As mais de 150 páginas do volume não trazem uma descrição distanciada, com o verniz próprio das biografias, mas o testemunho de quem acompanhou de perto parte significativa dessa trajetória. A autora tem recordações dos episódios que está a narrar. Os sofrimentos de Cacilda, os anos de ouro no TBC – Teatro Brasileiro de Comédia, a maturidade artística e o ímpeto de ter uma companhia própria. “Já contei tantas vezes essa história que estou me repetindo”, confessa a pesquisadora.

Em 1983, ela havia organizado, ao lado de Nanci Fernandes, o título Uma atriz: Cacilda Becker. Lá, a intenção era elencar pessoas que foram determinantes para a intérprete: A influência de Maria Jacintha, diretora do Teatro do Estudante. O papel de Alfredo Mesquita, à frente do Grupo Experimental e da EAD – Escola de Arte Dramática. Os depoimentos de encenadores estrangeiros – como Ziembinski, Luciano Salce, Ruggero Jacobbi – sobre seu estilo de interpretação.

Em Santos, em 1938, tateando a dança

Nessa nova obra, o resultado tem sabor diferente. Ainda que continue voltado a seu percurso profissional, revela um pouco mais sobre a vida da Cacilda, especialmente na juventude. Outro acréscimo significativo são as críticas que ela recebeu, tanto no teatro como no cinema.

Uma vida em imagens

Dois fotógrafos acompanharam a evolução profissional de Cacilda Becker. Nos anos 1930, Boris Kauffmann capturou sua adolescência em Santos e a paixão pela dança. Já como atriz profissional, quem lhe devotou olhar atento foi Fredi Kleemann: documentou seu esplendor no TBC e, posteriormente, na companhia que levava seu nome.

Cacilda Becker: uma mulher de muita importância reúne esses registros preciosos. Talvez os últimos vestígios materiais do alardeado talento de Cacilda. Ainda assim, é preciso dizer, as imagens são incapazes de dar conta do alcance de sua presença. No teatro, fotografias são tentativas de eternizar aquilo que é, por natureza, fugidio. Era algo de inefável o que tornava Cacilda Becker única, fulgurante, “a maior figura que o teatro produziu no Brasil”, segundo as palavras do historiador Francisco Iglesias. Como apreender o que acontecia quando ela subia ao palco? A pesquisadora se impõe tal tarefa. Só que sem delinear o retrato de uma artista irretocável. Antes, deixa entrever a potência de suas fragilidades.

No Rio, em 1946, entre O’Neill e Shakespeare

Na juventude, Cacilda gozava dos elogios que recebia. Com o tempo, porém, sua parcela de vaidade decresceu, cedendo lugar à autocrítica. Em 1958, Quando encenou Jornada de um longo dia para dentro da noite, Cacilda fazia reparos à própria atuação. De nada serviram as louvações que Décio de Almeida Prado e Paulo Francis lhe teceram em suas críticas. Ela ainda não havia alcançado inteiramente Mary Tirone, faltavam-lhe meios de dar corpo e gestos à personagem de Eugene O’Neill. “Eu era extremamente jovem como atriz e como mulher para fazer o papel”, disse em entrevista. Também não deixava de estar sempre atenta às suas limitações técnicas. A atriz dizia ter poucos recursos vocais, constatava que algumas produções custavam-lhe imenso esforço físico.

Verdade que os anos no Teatro Brasileiro de Comédia lhe deram os instrumentos de que necessitava. “O TBC, em minha carreira, significa realmente, e com sinceridade , a Escola”, declarou. Mais adiante, ao fundar a Companhia Cacilda Becker, aperfeiçoou estilo e repertório. “Ela amadureceu mesmo. Artisticamente e moralmente”, acredita a pesquisadora. “No começo, estava preocupada consigo mesma. Depois, com o tempo, foi ficando mais calma, descobriu que era uma líder. Tomou para si uma preocupação com o coletivo.” Nos anos 1960, lutaria pela classe teatral, enfrentaria a censura e viria a assumir a presidência da Comissão Estadual de Teatro, fazendo a ponte entre governo e artistas.

No Rio de Janeiro, em 1942

Só que nada disso explica completamente Cacilda. Fica a pergunta insistindo: O que havia ali de tão extraordinário? “Cacilda vivia intensamente o dia de hoje”, conta Maria Thereza. “Como se tudo fosse acabar, como se não houvesse mais o dia seguinte. Era uma chama viva.” A história pessoal da atriz também fornece chaves ao enigma. “Cacilda dizia: ‘O meu entusiasmo nasce de uma desilusão. Por isso, é muito forte'”, relata a estudiosa. “Era um sofrimento constante, um espírito sempre atormentado pela culpa. Culpa de quê? Era um estado de alma.”

No livro, Maria Thereza contempla de relance aspectos biográficos. Apenas cita o fracasso do primeiro casamento e sua briga judicial pela guarda do filho. Sobre o segundo casamento, com o ator Walmor Chagas, o tratamento não é diferente. A obra não explora os interstícios da relação conjugal, mas frisa um aspecto essencial desse encontro: revela o quanto ele foi benéfico para a arte da intérprete. “Walmor era mais novo, mas percebia o valor da geração de Cacilda. De alguma maneira, é como se ele tivesse misturado as duas épocas, ficou com os dois sabores”, conta a escritora. Outro dado: o lado racional do marido também teria servido para temperar sua sensibilidade exacerbada.

Em Jornada de um longo dia para dentro da noite (1958)

Em seu último espetáculo, Esperando Godot, ela voltava a dilacerar-se à procura da personagem. Talvez a mais difícil dos seus 28 anos de carreira. Estava insegura, a temer um futuro e um teatro em que ela não coubesse mais. A morte trágica, depois de sofrer um aneurisma cerebral em cena, em 1969, só serviu para sublinhar o traço melancólico de sua personalidade.

Mas não é disso que fala Cacilda em sua última entrevista, incluída no volume. Nas respostas à jornalista Daisy Fonseca, ela ainda fazia planos. Não adivinhava o fim prematuro. Queria viver. “Trabalhar, educar meus filhos, viajar… Eu preciso ver coisas, ver o mundo. Ver gente. Ver tudo!”

Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, em 22/7/2013

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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