Crítica
30.8.2013 | por Valmir Santos
Foto de capa: Mayara Domingues/Cena 2013
Acostumado às adaptações teatrais em que Clarice Lispector é nublada por conceitos existencialistas ou, mais diretamente, violentada pela autoajuda, o público brasileiro depara com uma abordagem mais solar da sua obra na transposição cênica de alguns dos seus textos pelas mãos meticulosas do encenador e dramaturgo francês Bruno Bayen.
Ele preserva os graus de densidade e complexidade do universo que pisa, abrindo e fechando o espetáculo com a história de A mulher que matou os peixes, ou La femme qui tua lês poissons, e assim o batiza.
A natureza do livro para crianças, de 1968, em nada impede que Bayen eleve a narrativa confessional ao mesmo patamar da escrita para adultos, coerência flagrante da literatura clariciana: jamais ignorar a inteligência do seu leitor, operando sempre com notável sofisticação de linguagem. Ao que o também adaptador responde à altura.
A dramaturgia constrói com clareza a cohabitação de passagens de contos, crônicas e romances que incidem na inspiradora atuação de Emmanuelle Lafon. Sua voz não é apenas a da narradora a quem a autora emprestou seu próprio nome, mas traz consigo a escritora sem que precise caracterizá-la, cavar verossimilhança física, enlaçando vida e obra sem sobressaltos.
Para tanto cuidado com os sistemas semântico e estilístico corresponde o apuro na teatralidade. Poderia se falar em solo, mas Lafon nunca está sozinha. Vez ou outra, o operador técnico que ocupa o nicho da margem direita do palco, Vladimir Kudryavtsev, também contrarregra, ator e dançarino, incumbe-se de personagens, de figuras ou das funções que lhe cabem. O espectador o avista entrando e saindo em passos fugidios.
Desde que irrompe surpreendentemente com a primeira frase-mãe do livro, “Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu”, a atriz já traz o espectador consigo. O código aberto da quarta parede institui desde logo o estatuto da composição cênica por camadas, por texturas de uma paisagem sem molduras, pinceladas por luzes, sombras, imagens, sons, objetos, corpos e outras incidências sutis.
Bayen tece filigranas cinematográficas tradutoras de nostalgias, sonhos e searas lúdicas para ler contextos em que bifurcam adultos e crianças. Mas tudo é teatro, e ele mora nos detalhes: um salto abandonado que fica para trás, os pés descalços, a folha de árvore amarrada ao pulso, o pires e a xícara na hora de sorver um café.
Não há mirabolâncias tecnológicas. Os aparatos são rudimentares, como os refletores que tanto o técnico quanto a intérprete operam organicamente, reproduzindo cintilações com o mesmo encantamento de um período forte e elegante no interior de um parágrafo.
O trabalho de Bruno Bayen, que teve sua origem em residência realizada em 2011 no âmbito do Tempo_Festival das Artes, no Rio, e agora chega “acabado” a Brasília e a Londrina, vem subverter as convenções acomodadas das visitas teatrais à escrita de Lispector. O princípio é elementar: ele demonstrar saber escutá-la muito bem.
>> O jornalista viaja a convite da organização do 14º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília.
>> Sessões em São Paulo dias 31/8 e 1º/9, sábado e domingo, no Sesc Bom Retiro.
>> As duas sessões no 20º Porto Alegre em Cena, dia 4/9.
Ficha técnica
Elenco: Emmanuelle Lafon e Vladimir Kudryavtsev
Texto: Clarice Lispector
Direção e adaptação: Bruno Bayen
Iluminação e colaboração artística: Philippe Ulysse
Figurino e cenografia: Renata S. Bueno
Assistente de cenografia: Sabrina Montiel-Soto
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.