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Reportagem

Oficina politiza saga de Cacilda Becker

19.8.2013  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Jennifer Glass

Cacilda Becker é uma obsessão antiga de José Celso Martinez Corrêa. Desde os anos 1990, o diretor do Oficina se dedica à memória da maior atriz brasileira. Quando resolveu estrear Cacilda!!!, a motivação não era diferente. Mas a multidão nas ruas atropelou a trama que já estava pronta para ir ao palco.

A montagem que está em cartaz em São Paulo – depois de ser vista em Araraquara, São José dos Campos e Sorocaba – não é aquela que o encenador passou meses ensaiando. Boa parte daquilo que o espectador verá foi concebido em apenas nove dias. E aproxima as convulsões sociais a que o País assiste desde junho da turbulência política de 1968. “Na peça, não estamos falando do passado, mas de 2013. É aqui e agora que as coisas se passam”, comenta o diretor.

Influenciada por atuais passeatas, peça revê 1968

Esse é o terceiro espetáculo que o Teatro Oficina dedica à trajetória de Cacilda. No primeiro, de 1998, a atriz era observada sob diversos pontos de vista e em diferentes momentos. Do último ano de sua vida: 1969, quando sofre um aneurisma cerebral enquanto encenava Esperando Godot. Até a juventude e os primeiros passos no teatro. A segunda obra, lançada no ano passado, cobria o início de sua carreira no Rio de Janeiro.

Na nova produção, são duas as fases abordadas. Durante o primeiro ato, acompanhamos os marcantes anos que Cacilda Becker viveu no TBC – Teatro Brasileiro de Comédia. Após o intervalo, será uma artista amadurecida que retorna à cena. Em 1968, a atriz assumia a presidência da Comissão Estadual do Teatro. “Era o equivalente a uma secretaria, mas ela fez por nós o que faria um ministério”, comenta Zé Celso. “Foi uma líder não só do teatro, mas das artes.”

A mulher que assumiu a liderança da classe teatral no auge da censura e da repressão militar havia se tornado mais do que uma atriz. “Cacilda tem dimensão popular”, crê o encenador. “Eu me prometi que ela seria reconhecida para além dos limites do teatro, que são pequenos para ela.”

Há uma Cacilda para cada fase: Camila Mota a interpreta nos anos do TBC e Sylvia Prado dá vida à atriz no período da ditadura militar. Ao restante do elenco cabem papéis fixos. Zé Celso surge como Franco Zampari, empresário italiano responsável pela criação do Teatro Brasileiro de Comédia. Marcelo Drummond encarna Walmor Chagas, segundo marido da atriz.

Figuras determinantes para as artes brasileiras entre os anos 1940 e 1960 estão presentes no espetáculo. Ruth Escobar, Adolfo Celi, Tônia Carrero, Alfredo Mesquita, Décio de Almeida Prado, Cleyde Yáconis e Nydia Licia estão entre as personalidades lembradas. Mas nada disso faz de Cacilda!!! um espetáculo com pretensões documentais. Menos do que uma biografia cênica, o título se impõe como uma visão apaixonada e particular sobre os fatos. Instaura o componente do delírio nas passagens em que relembra a montagem de Esperando Godot. Amarra episódios verídicos a personagens que Cacilda interpretou. “Toda a vida dela se mistura com o teatro”, observa o diretor. “As duas coisas nunca estavam separadas.”

A atriz Sylvia Prado vive Cacilda na maturidade

O que a política tem a ver com tudo isso? Muita coisa. Mais ainda se abrirmos o leque para abarcar as atuais políticas para cultura. Quando revela o funcionamento do teatro no final dos anos 1940, focaliza-se a problemática da profissionalização nas artes, tema ainda premente e sem solução à vista. “O trabalho antes era permanente. Hoje tudo se organiza em projetos. As pessoas vão e vêm”, diz Zé Celso. Ao trazer o modelo de mecenato praticado por Franco Zampari, a obra também lança luzes sobre a vigente e deficitária prática de transferência de recursos para as artes. “A burguesia hoje não está mais interessada em cultura. Essa figura do ‘papaizão’, que dava dinheiro para as artes, acabou”, lembra a atriz Camila Mota.

As reverberações políticas do ano do AI-5 são ainda mais evidentes. Foi uma alta nos preços do restaurante Calabouço o que provocou uma manifestação e o posterior assassinato do estudante Edson Luís pela polícia. “Naquela época também foram centavos o que despertou a revolta. Coloquei nessa peça coisas que eu vivi”, ressalta Zé Celso, que se ressente da pouca presença da cultura nas atuais manifestações. “Havia um movimento cultural muito forte naquela época. Hoje, ficamos um pouco de fora, mas estamos correndo atrás.”

 

Texto publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, 16/8/2013

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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