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Reportagem

Falos & Stercus propõe diálogo sensual com urbe

19.9.2013  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Frederico Ruas

Vinte e dois anos de atividade não arrefeceram o ímpeto provocador do grupo de teatro Falos & Stercus. A mais nova ousadia será nesta sexta-feira (13/9), às 18h, no Arroio Dilúvio, entre a Avenida Ipiranga e a Borges de Medeiros, com apresentação única da intervenção Ilha dos amores — Um diálogo sensual com a cidade. A atração faz parte do 20º Porto Alegre Em Cena.

Durante 50 minutos, um grupo de 26 atores e bailarinos mobilizará os transeuntes com uma performance que envolverá até mesmo pessoas de wakeboard na água poluída do Dilúvio. A maioria dos participantes estará nas margens, executando movimentos que jogam com o contraste entre encobrimento e desvelamento da nudez. A ideia é criar um espaço de prazer em meio ao embotamento da vida urbana.

“Queremos dar uma outra conotação para esse espaço que é malcuidado”, explica Marcelo Restori, diretor do grupo, referindo-se ao Arroio Dilúvio. “O convívio entre as pessoas não tem sido uma prioridade no conceito de cidade que está em rumo.”

A Ilha dos Amores de que trata o título faz referência a uma passagem do épico Os Lusíadas, de Camões, em que os heróis têm seu esforço recompensado com prazeres divinos. Também serviu de subsídio o naturalismo da estética dos pintores impressionistas. Será que o Falos pretende suavizar o contorno das imagens, como fizeram Renoir e sua turma? Não tão cedo, garante Restori. O que está em questão, mais uma vez, é a ousadia:

“Lembro de uma pintura impressionista que tem como modelo uma prostituta, enquanto na arte clássica as modelos eram da nobreza.”

Segundo o diretor, o trabalho marca o fim de uma crise interna que teve seu auge no espetáculo Hybris, estreado no final de 2010, depois de cinco anos de uma difícil gestação. Desde então, dois integrantes deixaram o coletivo e foi preciso rediscutir o futuro.

Ilha dos Amores é fruto de uma residência artística que começou no início de 2013 com o objetivo de oxigenar o grupo. Foram recrutados jovens que aprenderam as técnicas e a estética com as quais o Falos tem trabalhado. Passar esse conhecimento foi uma maneira de visualizar com mais clareza a própria identidade. O lugar da nudez, por exemplo, que aparece em diversos espetáculos.

Cena da intervenção no Arroio Dilúvio, em Porto Alegre

“Nosso nu é uma vivência. A sexualidade está no trabalho do grupo como matéria cênica, e não como matéria pessoal”, argumenta Restori. “O nu não é novo no teatro, mas já nos levou a detenções e a processos. Ganhamos todos. É um discurso artístico, não é um ato obsceno em via pública.”

Pioneiros no que diz respeito à combinação entre teatro e performance no Estado, o que lhe valeu críticas, o Falos & Stercus sobreviveu para ver essa estética difundida, hoje, em diversos grupos da Capital. Agora, eles querem debater uma nova fronteira: o pós-humano. O título provisório do próximo espetáculo, ainda sem previsão de estreia, é Bytes de amnésia. A premissa: enquanto os tempos modernos foram marcados pelo medo da máquina, os novos tempos são caracterizados pelo desejo de ser máquina. O grupo travou contato com uma teoria segundo a qual chegará um momento em que o ser humano não morrerá. A consciência será transferida para um computador, com vantagens: a capacidade da memória, por exemplo, aumentará. Restori questiona:

“Mas qual é a ética desse pensamento?”.

Intervenção transforma esquina sem graça em ode ao prazer

No final de tarde da sexta-feira 13, o grupo de teatro Falos & Stercus, dirigido por Marcelo Restori, tentou o impossível: convidar a população de Porto Alegre a deixar de lado o moralismo.

Transformou a esquina da Avenida Ipiranga com a Borges de Medeiros, uma das mais sem graça da Capital, em uma ode ao prazer. A intervenção era intitulada Ilha dos Amores – Um diálogo sensual com a cidade e fazia parte do 20º Porto Alegre Em Cena.

Sabia-se que haveria nudez. Houve quem previsse caos no trânsito. Houve quem esperasse revolta das pessoas. E houve quem falasse em participação especial da polícia. Nada disso aconteceu. O público de homens e mulheres de diferentes idades que se reuniu no local assistiu a tudo com curiosidade e sorrisinho no canto da boca. O Falos & Stercus sabe mostrar aquilo que todos querem ver mas têm vergonha de dizer.

Por mais que tivesse data e hora marcada, a performance surpreendeu. Surfistas domaram o Arroio Dilúvio com pranchas de wakeboard ao som dos urros dos espectadores, desacostumados com a ideia de assistir a qualquer coisa agradável naquele depósito de água – é preciso reconhecer – malcheirosa.

Nos taludes, homens e mulheres se beijavam usando apenas botas. Nada de grotesco, nada de feio. Apenas um beijo nu, apaixonado e sensual. Sem-vergonhice seria estar descalço e machucar os pés.

Ações de 26 atores ou bailarinos seduzem transeuntes

Outros se equilibravam no parapeito da ponte da Borges de Medeiros, brincando com bacias e toalhas molhadas que respingavam no público. Era uma referência à pintura As grandes banhistas, de Renoir, mas você não precisava saber disso para se divertir.

A cena inesquecível foi durante um sinal fechado da Borges, quando duas performers recolheram, com as mãos em concha, porções de folhinhas que estavam depositadas no vão do para-brisa dianteiro de um carro e sopraram, fazendo-as voar para todos os lados. A motorista do veículo certamente não havia pensado em maneira mais poética de ter seu carro limpo.

A diversão democrática e sapeca proporcionada pelo Falos & Stercus era quase um acinte aos prazeres consumistas do shopping que fica ali em frente. Ninguém sentiu falta do ar-condicionado.

E nós, que estávamos até conformados com a truculência das ruas, pudemos, enfim, ter prazer em paz.

>> Publicado originalmente no jornal Zero Hora, Segundo Caderno, em 11 e 14/9/2013

Ficha técnica

Concepção e direção: Marcelo Restori

Com: Grupo Falos & Stercus (Carla Cassapo, Cris Kessler, Fábio Cunha, Fábio Rangel e Fredericco Restori

Artistas selecionadas na residência com o grupo: Aline Karpinski, Bia Noy, Carol Martins, Juliana Coutinho, Manuela Albrecht, Nátali Caterina Karro e convidados

Elementos cenográficos: Luiz Marasca

Desenho de Luz: Veridiana Matias

Preparador de rapel cênico: Fábio Cunha

Trilha Sonora: 4Nazzo, Flu e Cláudio Bonder

Fotos: Frederico Ruas

Produção: Carla Cassapo, Cris Kessler e Fábio Rangel

 

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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