Crítica
2.9.2013 | por Valmir Santos
Foto de capa: Fred Cintra/Cena 2013
Com frequência, elas são vistas participando ou protagonizando montagens infantojuvenis. Quando contracenam com adultos, não raro roubam a cena. Mas a presença de crianças em Materia prima, na grafia em espanhol, é justamente a substância motriz do projeto singular da companhia La Tristura, de Madri, em turnê inédita pelo Brasil.
Duas meninas e dois meninos de 12 anos – eles tinham 9 na estreia – vivem situações alusivas ao universo dos adultos e dilaceram os corações daqueles que estão na audiência das sessões noturnas (e não vespertinas). Foi assim no Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, brindado com a obra em seu desfecho no fim de semana. A produção segue para o Festival Internacional de Londrina, o Filo.
Não é redundante afirmar que estamos diante de um drama, apesar de parte dos espectadores brasileiros buscar desesperadamente o alívio do riso exaltado como sintoma da infantilização da sociedade acuada diante do espelho.
Cena do espetáculo da Compañía La Tristura, de 2011
O quarteto impúbere nos faz acessar as origens do que fomos quando ainda não éramos. Se o vivido é imprescindível ao biodrama, como conceitua a argentina Vivi Tellas, a narrativa aqui assume o seu contrário: o porvir. Essa inversão desloca o que vemos ou ouvimos no palco para as memórias pessoais da infância.
Por meio da dramaturgia, os pequenos amadores mimetizam o sentimento de mundo do indivíduo. Empreendem diálogos ou solilóquios como se fossem seres comportamental e biologicamente constituídos, ponderando acertos, erros, revisões. O plano do inconsciente adquire a forma de texto projetado. Ler a voz do narrador gera intermitências do silêncio reflexivo.
E lá estão Ginebra Ferreira, Gonzalo Herrero, Siro Ouro e Candela Recio brincando de teatro feito gente grande, do registro naturalista ao performativo. Pulam em cima da cama. Atiram-se na lama. São solitários. Solidários. Não há encadeamento de fatos, mas de ações, sensações.
O texto em tela questiona a qualidade do presente. No palco, o futuro é prospectado em atmosferas pouco iluminadas. Numa festa regada a champanhe, a moralidade é cutucada com vara curta: afinal, quem bebe, a criança ou o adulto?
Cena de festa com trajes a rigor e ideias sobre o porvir
O ambicionado estágio do jogo entre atores plasma intuitivamente porque os intérpretes-aprendizes se veem imbuídos da brincadeira. O faz de conta com a gravidade dos porquês existencialistas desfila sem maiores dificuldades. Extraordinárias as intencionalidades gestual e vocal de quem viveu anos. Sem apagamento dos trejeitos da idade.
Ninguém flana na superfície. Não há truques. Todos estão concentrados, ludicamente, na condição de artífices absolutos. Corresponsáveis: mediante qualquer deslize, o efeito dominó se precipitará sobre suas cabeças aos olhos do muro de espectadores que cresce à frente.
Quem coloca o mal-estar e o bem-estar na gangorra são os atores cocriadores da peça e cofundadores da companhia há nove anos. Itsaso Arana, Pablo Fidalgo, Violeta Gil e Celso Giménez estendem-se magistralmente ao elenco mirim. E não como autobiografia estrita.
O raciocínio é simples: são eles, na casa dos 30 anos, os adultos angustiados, nostálgicos e alvissareiros que rebobinam a vida até o ponto entre o fim da infância (e com ela, das ilusões em suas dores e delícias) e a aurora da adolescência (ilusões reinventadas e às vezes perpetuadas).
Atmosferas pouco iluminadas na maioria das cenas
É dessa cartola que o quarteto adulto pinça a solução de retirar-se da cena sem romper o vínculo primordial com ela. Tampouco converter meninos e meninas em “títeres”. A personalidade de cada um destes é um desassombro, vide o delicado e demorado foco de luz sobre seus rostos, ao final, fixando o espelhamento. A beleza está em como os codiretores e codramaturgos pactuam as verdades simbólicas de quem faz, de quem inspira e de quem encontra a arte. Uma construção ética dos afetos.
A última vez que vimos crianças teatralmente tão à vontade foi em Les éphémères (Os efêmeros), do grupo francês Théâtre du Soleil, em 2007, em que contracenavam com adultos. Sozinhas, e com tanta autonomia, nunca.
>> O jornalista viaja a convite da organização do 14º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília.
>> As sessões no Filo, dias 4 e 5/9.
Ficha técnica
Elenco: Ginebra Ferreira, Gonzalo Herrero, Siro Ouro e Candela Recio
Criação e texto: Itsaso Arana, Pablo Fidalgo, Violeta Gil, Celso Gimenez
Assistente de direção: David Mallols
Música: Merran Laginestra
Iluminação: Eduardo Vizuete e David Benito
Figurino: Pedro y el lobo e La Tristura
Coordenação técnica: Eduardo Vizuete
Produção: Compañía La Tristura