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Reportagem

130 anos sem a incógnita lucidez de Qorpo-Santo

19.11.2013  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Guga Melgar

Sem homenagens de relevo, os 130 anos de morte de Qorpo-Santo (1829-1883) foram completados no dia 1º de maio. A ausência do dramaturgo, poeta e escritor no calendário cultural sinaliza que este gaúcho de Triunfo ainda é – para não perder o jogo de palavras – um corpo estranho na literatura brasileira.

Qorpo-Santo – batizado José Joaquim de Campos Leão – é uma figura do século 19 redescoberta cem anos depois, por iniciativa do professor Aníbal Damasceno Ferreira, morto em abril de 2013. Na década de 1950, ele se encarregou de encontrar volumes da obra do escritor com colecionadores e passou a divulgá-la entre a intelectualidade porto-alegrense. Seu grande achado foi um volume com 17 peças (uma delas não concluída) que representa, até hoje, a parte mais conhecida da produção de Qorpo-Santo. A primeira montagem veio em 1966: um espetáculo com três desses textos, sob direção de Antônio Carlos de Sena, amigo de Aníbal. Foi um sucesso de público e de crítica. Depois, o professor de literatura Guilhermino Cesar tornou-se um dos divulgadores dessa obra dramática.

Uma segunda montagem do espetáculo de Sena, apresentada no Rio, em 1968, selou o reconhecimento nacional. Qorpo-Santo acabou saudado como precursor do teatro do absurdo. À época, o crítico Yan Michalski, referência no país, escreveu que a redescoberta do autor “torna parcialmente obsoletos todos os livros de história da dramaturgia brasileira”.

A ideia de Qorpo-Santo como precursor do teatro do absurdo havia inspirado o espetáculo que marcou a estreia mundial de sua obra. Designação que se refere à dramaturgia de autores europeus como Beckett, Ionesco e Arrabal, o teatro do absurdo estava em voga na capital. O diretor Antônio Carlos de Sena havia sido assistente de direção de As cadeiras e ator em Jacques ou a submissão, ambas escritas por Ionesco e dirigidas por Fausto Fuser, professor do Curso de Arte Dramática (atual Departamento de Arte Dramática da UFRGS). Sena também atuara em Piquenique no front, de Arrabal, com direção de Linneu Dias. Antes, segundo Sena, houve montagens em Porto Alegre e em Caxias do Sul de A cantora careca, a obra mais conhecida de Ionesco.

“O público sempre reagia muito bem às peças do teatro do absurdo, até porque eram muito engraçadas. E a do Qorpo-Santo também. O público ria do início ao fim”, lembra o diretor (leia mais adiante o seu depoimento sobre a montagem de 1966).

Flávio Oliveira, compositor que criou a trilha sonora original do espetáculo, completa: “Nós reconhecemos a originalidade de Qorpo-Santo e a sua importância, na contramão de certo ranço acadêmico-literário da época e à revelia de certa intelectualidade que não enxergava a sua importância.”

Qorpo-Santo é natural de Triunfo (RS)

O rótulo de precursor do teatro do absurdo era uma maneira de legitimar a escrita de Qorpo-Santo, tornando sua poética atual nos anos 1960. Passado o tempo, vieram novas hipóteses. No livro Qorpo-Santo – surrealismo ou absurdo (editora Perspectiva), o pesquisador Eudinyr Fraga associou-o ao surrealismo, outro movimento originário da Europa.

Estudiosos de sua obra questionam, no entanto, se não seria o caso de reconciliar o autor com a tradição brasileira. Um dos pioneiros nesse esforço foi Flávio Aguiar, professor aposentado de literatura da USP, que publicou, em 1975, o livro Os homens precários (A Nação/Instituto Estadual do Livro – RS), resultado de sua dissertação de mestrado.

“Nela, eu demonstrei, e não apenas afirmei, que o teatro de Qorpo-Santo estava solidamente ancorado na tradição teatral brasileira do século 19, na comédia de costumes, no teatro realista, nas farsas portuguesas de Antonio José, que na época eram consideradas parte do teatro brasileiro. Só que ele misturou tudo, num coquetel extremamente original para a época, que não foi nem poderia ser compreendido. Nesse sentido, sim, ele foi um precursor das vanguardas do século 20”, diz Aguiar.

Já a pesquisadora Denise Espírito Santo defende que o autor pode ser associado a uma certa tradição do romantismo do século 19: “O romantismo brasileiro é muito eclético. Temos uma vertente que o (crítico e historiador da literatura) Antonio Candido chama de poesia pantagruélica, que inclui autores como Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, que eram poetas mais lunares. Muitos faziam uma poesia que tinha um sentido totalmente jocoso, um humor negro. Qorpo-Santo está inscrito, em certa maneira, dentro de uma tradição romântica que é essa do fora do lugar, do fora do esquadro”.

Denise tem se dedicado a colocar em circulação outras vertentes da obra do autor, para além de sua conhecida dramaturgia. Em 2000, organizou Poemas (Contra Capa) e, em 2003, Miscelânea quriosa (Casa da Palavra), com uma seleção de aforismos, textos autobiográficos e outros excertos. Em 2014, pretende publicar um volume exclusivamente de aforismos.

Cia. São Jorge de Variedades (SP) o celebrou em 1999

Toda a produção que se conhece do autor vem da Ensiqlopèdia ou seis mezes de huma enfermidade. São nove volumes impressos pelo próprio Qorpo-Santo em 1877 que reúnem peças de teatro, poemas e outras produções. Desta coleção, são conhecidos seis volumes, que estão disponíveis para leitura, na íntegra, em versão fac-similar no site da biblioteca da PUCRS. Leda Maria Martins, professora de literatura e de teatro da UFMG e autora de O moderno teatro de Qorpo-Santo (Editora UFMG), aponta a necessidade de uma nova edição impressa da Ensiqlopèdia que oportunize uma visão global:

“Precisamos reeditar todo o Qorpo-Santo. Se houver outros pesquisadores interessados, me coloco à disposição. É ótimo ter estudos sobre aspectos de sua obra, é fundamental para recolocá-lo na agenda do teatro brasileiro. Mas precisamos de uma visão mais geral. Precisamos tomar a Ensiqlopèdia como objeto de estudo. Falta essa dimensão da criação em sua transversalidade, pois nisso ele também foi inovador.”

Lúcido alucinado

A apreciação da obra ainda é turvada pela biografia. Considerado louco em sua época, Qorpo-Santo teve a qualidade de sua produção questionada – um espectro que assombra sua memória até hoje. Um dos aspectos que contribuíram para isso foi sua iniciativa de criar uma reforma ortográfica da língua portuguesa baseada na pronúncia das palavras. Daí a inusitada grafia (“qorpo”, e não “corpo”) que utilizou em seu próprio codinome – aliás, decorrente de uma iluminação espiritual que acreditou ter recebido em determinado momento.

Essa mitologia levou Qorpo-Santo a se tornar, ele mesmo, um personagem: parte de sua história é recuperada, com o recurso da ficção, no romance Cães da província (1987), de Luiz Antonio de Assis Brasil. O livro vai inspirar uma peça, dirigida por Inês Marocco, que deve estrear em 2014 e que contará também com trechos de textos de Qorpo-Santo.

Também no ano que vem, devem entrar em cartaz montagens dirigidas pela pesquisadora Maria Aparecida Ramos Dias, entre elas Eu sou vida; eu não sou morte e Lanterna de fogo. Com produção da Fundação Cultural Qorpo-Santo, em Triunfo, os espetáculos estrearão na cidade natal do autor e depois devem ter sessões em Porto Alegre.

“Em Triunfo, os 130 anos de morte não passaram em branco. Realizamos saraus, debates. E estamos criando um grupo de estudos”, diz Maria Aparecida.

Entre as montagens de textos de Qorpo-Santo a que o público gaúcho pôde assistir nos últimos tempos, estiveram Dr. QS – quriozas qomédias (2005), do grupo gaúcho Depósito de Teatro, com direção de Roberto Oliveira (montagem que arrematou cinco Prêmios Açorianos de Teatro da prefeitura de Porto Alegre, incluindo melhor espetáculo), e, mais recentemente, Labirinto, produção carioca do diretor Moacir Chaves apresentada no Porto Alegre Em Cena de 2011.

Em um artigo reunido no livro Coruja, Qorpo-Santo & Jacaré (L&PM), lançado neste ano, o professor de literatura da UFRGS Luís Augusto Fischer anota sobre a alegada loucura do autor: “O depoimento de dois contemporâneos converge para o desenho de uma figura esquisita, ao modo dos loucos que povoam as cidades. Em resumo, ele não foi reconhecido como um escritor, em nenhum sentido. Era um alucinado que escrevia”. Falando à reportagem, Fischer defende: “Como há essa pecha em torno dele, parece que não temos acesso direto a sua obra. Esse acesso é mediado. Mas não precisamos criar rótulos. Talvez seja melhor ler sua obra desprevenidamente. Sabemos que ele queria se comunicar. Fez jornal e escreveu teatro. São indícios de que queria entrar no circuito. Temos que parar de enquadrá-lo e começar a analisá-lo.”

É hora de descobrir a lucidez de Qorpo-Santo.

Diretor relembra primeira montagem

O gaúcho Sena quando montou Qorpo-Santo em 1966

No depoimento a seguir, concedido em sua casa no bairro Santa Tereza, em Porto Alegre, o diretor teatral Antônio Carlos de Sena, 72 anos, lembra a história da primeira montagem conhecida do teatro de Qorpo-Santo.

O espetáculo estreou em 26 de agosto de 1966, no Clube de Cultura, em Porto Alegre, e apresentava três textos do autor, cem anos após terem sido escritos: As relações naturais, Eu sou vida; eu não sou morte e Mateus e Mateusa. Dois anos depois, uma remontagem foi apresentada no Rio, marcando a descoberta de sua obra em nível nacional.

Versos n’O mocho

“Eu era amigo do Aníbal Damasceno Ferreira desde a infância porque ele era meu vizinho no bairro Azenha. Eu fazia teatro de bonecos, e o Aníbal era um estudioso autodidata da literatura gaúcha, atividade que o levou a descobrir autores que citavam Qorpo-Santo, mas sem conhecerem sua obra. Ele aparecia nessas citações como um tipo popular, meio amalucado e autor de versos que andavam pela capital de boca em boca. Na década de 1950, o Aníbal começou a publicar esses versos n’O mocho, nosso jornalzinho mimeografado. Também começou a procurar a obra dele, mas ninguém a conhecia.”

O resgate dos livros

“No fim dos anos 1950, Aníbal chegou ao bibliófilo Dario de Bittencourt. Tomou emprestados três dos nove volumes escritos pelo Qorpo-Santo. Para divulgá-los, pensou no escritor e professor Guilhermino Cesar, a quem repassou os livros. Só que o Guilhermino nunca os devolveu. O que achou da leitura? Não se sabe. Em 1963, o professor Fausto Fuser, que havia vindo de São Paulo e ficou muito amigo meu e do Aníbal, se propôs a ir à casa dele resgatá-los. Não sabemos com quem ele falou, se com um filho, com uma empregada, mas conseguimos levar os três livros para o CAD (Curso de Arte Dramática, atual Departamento de Arte Dramática da UFRGS).”

Coincidência inesperada

“Em 1963, Fuser estava ensaiando As cadeiras, de Ionesco. Eu era assistente de direção. Sentamos e abrimos um dos livros do Qorpo-Santo, onde estavam as 17 peças de teatro dele. A primeira, Mateus e Mateusa, tem como protagonistas um casal de velhos que quer passar sua mensagem para o mundo. Em As cadeiras, de Ionesco, também há um casal de idosos. Essas quatro personagens têm a rabugice elevada à quinta potência. A mensagem final de As cadeiras vem de um orador, e o cara é mudo. Já o final da peça do Qorpo-Santo também tem a moral da história dita por outro personagem, que também faz algo sem sentido. Então, evidentemente, nos impressionamos muito com a coincidência. Acabou com o Fausto decidindo montar três peças do Qorpo-Santo (Mateus e Mateusa, As relações naturais e Eu sou vida; eu não sou morte, que nós três achamos a melhor de todas), mas com o diretor do CAD, Angelo Ricci, proibindo a montagem ao saber que os livros haviam sido tirados da casa do Guilhermino Cesar – nós os havíamos mimeografado e devolvido para o Dario de Bittencourt.”

Em busca de um elenco

“Saí do curso e fui trabalhar no Clube de Cultura como diretor de teatro. E o Aníbal sempre insistindo (na montagem do teatro de Qorpo-Santo). Pois, em 1964, comecei a ensaiar com atores amadores que andavam pelo clube. Já sabíamos da importância do Qorpo-Santo como precursor, com aquela singularidade e com a qualidade teatral dos textos. Então, no início de 1966, fomos à diretoria do Clube de Cultura e insistimos para se investir em um elenco de maior expressão, profissional. Foi difícil fazer com que aceitassem a proposta. Era caro. Mas o Clube concordou e contratamos um elenco extraordinário, especialmente o naipe feminino. A estreia foi em agosto de 1966.”

Marcos Wainberg e Marcos Schames contracenam

“Ou é gênio, ou sou louco”

“O Guilhermino, que já havia voltado depois de passar um tempo na Europa, foi convidado a assistir a um ensaio adiantado, para poder escrever a respeito. Foi e se entusiasmou. E escreveu mesmo um artigo para o Correio do Povo. Antes disso, o Aníbal distribuiu cópias das três peças para vários intelectuais e artistas de Porto Alegre para que se manifestassem. Nenhum se manifestou. Mas, depois do artigo do Guilhermino, e da própria estreia da montagem – vista por todos esses intelectuais, artistas, jornalistas –, a curiosidade em torno do nome do Qorpo-Santo aumentou. Em um momento ele era tido como louco, daqui a pouco já estavam dizendo que ele era precursor do teatro do absurdo! Foi quando o Guilhermino assumiu mesmo (a causa). Foi para o palco e disse assim: ‘Ou Qorpo-Santo é um gênio ou eu sou louco’.”

Nervosismo e consagração

“O Aníbal ia fazer uma ponta, mas, de tão nervoso, não a fez. E eu tive que entrar em cena. Foi uma noite muito tensa e importante, sabíamos que assim seria. No final, houve um debate acaloradíssimo. Era a primeira vez no mundo que se encenava Qorpo-Santo! No dia seguinte, saiu uma página praticamente inteira na Folha da Tarde com uma crítica do Walter Galvani endeusando o espetáculo. Da mesma forma, quando levamos o espetáculo ao Rio – depois de ele ficar uma temporada no Teatro de Equipe, em Porto Alegre –, o Yan Michalski, crítico mais conceituado do Brasil à época, ficou entusiasmadíssimo. Disse que o Qorpo-Santo era o precursor do teatro do absurdo e que a história da literatura dramática no Brasil, talvez no mundo, teria que ser modificada a partir daquela noite. Aquele marketing entre a intelectualidade se repetiu no Rio. E deu certo. Pena que o Aníbal, de tão nervoso, tenha perdido a estreia carioca. Perdeu um momento histórico.”

Montagem profissional

“Uma coisa que me deixa brabo: muitos estudiosos dizem que a estreia foi apresentada por alunos do CAD. Não é verdade. Muitos dos contratados tinham sido alunos do CAD, sim, mas já eram profissionais. A música original, extraordinária, foi composta pelo Flávio Oliveira. Foi uma montagem profissional.”

>> Publicado originalmente no Segundo Caderno do jornal Zero Hora em 16/11/2013.

 

 

 

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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