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Crítica

A estranha casa contemporânea

25.2.2014  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Patrick Berger

Meninos, eu vi e ouvi. Uma ópera de câmara com música do português Vasco Mendonça e libreto da inglesa Sam Holcroft esteve em cartaz por dois dias no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no último fim de semana. O espetáculo chama-se The house taken over. Título e texto em inglês explicam-se pelo fato de a produção ter origem e destino supranacionais, havendo estreado no Festival de Aix-en-Provence (França) em 2013.

Sam Holcroft, pertencente a uma nova geração de dramaturgos britânicos, adaptou para a cena o conto Casa tomada, do argentino Julio Cortázar (publicado em Bestiário, livro de 1951). A encenação, econômica e eficaz, é de Katie Mitchell.

Oliver Dunn, barítono,e Kitty Whately, meio-soprano, interpretam os irmãos Hector e Rosa, que vivem sozinhos numa ampla casa na Buenos Aires dos anos 1940. A residência, patrimônio familiar, será invadida por indivíduos ou forças cuja presença eles sentem e ouvem, mas não podem ver nem definir. O cenário de Alex Eales e a luz de James Farncombe condensam o espaço da casa, aludindo ao progressivo estreitamento da área habitada pelos irmãos.

A música de acento contemporâneo relaciona-se à dos compositores da Escola de Viena, de que Arnold Schönberg foi o decano; ou seja, não faz concessões às fórmulas melódicas às quais estamos habituados.

Executada por 13 instrumentistas que integram o grupo Asko/Schönberg, a partitura de Vasco Mendonça dedica-se a propor atmosferas, ajudando a história a caminhar e sugerindo ou preparando episódios – mas o prazer um pouco aflitivo que nos causa não cede à melodia discursiva, nem à harmonia que costuma acompanhá-la. O sentido de harmonia aqui está subvertido: a rigor, não existe acompanhamento como normalmente o entendemos, em decorrência de não existirem linhas melódicas segundo chaves tradicionais. Os instrumentos equivalem-se quanto à importância expressiva.

Os cantores trabalham sobre uma linguagem que o compositor chamou de “curta, rápida e direta”, por estar a serviço do diálogo. As falas, nas primeiras cenas, referem-se a tarefas corriqueiras como a de limpar a casa, o que tem origem na maneira pela qual Cortázar compreendia o elemento fantástico: algo a irromper no cotidiano a partir desse mesmo cotidiano, como que dele brotando. Era preciso, portanto, estabelecer a rotina (prosaica, mas obsessiva) das personagens, que os episódios estranhos virão quebrar.

A meio-soprano Kitty Whately na obra que estreou em 2013Sem créditos

A meio-soprano Whately na obra adaptada de Cortázar

As reações aos lances extraordinários tampouco acontecem como se estes fossem incompreensíveis, dignos de espanto. Os irmãos sofrem esses eventos como se já os previssem: portas que batem, por exemplo, designam que determinado cômodo foi ocupado e, para eles, perdido. A naturalidade estoica em lidar com o absurdo concorre para o nosso sentimento de estranheza, tornando a história ainda mais insólita. Hector e Rosa se exasperam, mas não resistem realmente aos inimigos invisíveis. No desfecho, parecem reconhecer a derrota para as forças inominadas.

O aspecto técnico da encenação e do jogo dos intérpretes admitiria leves reparos. Os sons são límpidos, exatos, nas vozes e instrumentos; quem sabe um pouco frios ou duros no desempenho dos atores-cantores, sobretudo o de Dunn, que com sua voz forte por vezes confere peso maior que o necessário às inflexões. Porém, pode ser que eu esteja a pedir algo que o estilo e a índole (pessoal, cultural) dos artistas não tenham o dever de nos dar.

De fato, cantores e montagem conseguem envolver a plateia, que ao fim responde com aplausos plenos, espontâneos. Ressalvas à parte, o espetáculo, no seu arrojo e perícia, soa sofisticado e estimulante.

Ficha técnica:

The house taken over

Ópera de câmara de Vasco Mendonça (música) e Sam Holcroft (libreto)

Baseada no conto Casa tomada, de Julio Cortázar

Encenação: Katie Mitchell

Com: Oliver Dunn (barítono) e Kitty Whately (meio-soprano), acompanhados pelo grupo Asko/Schönberg, dirigido por EtienneSiebens

Dramaturgia: Lyndsey Turner

Cenografia: Alex Eales

Desenho de luz: James Farncombe

.:. O espetáculo estreou no Festival de Aix-en-Provence, França, em julho de 2013. Exibido no Teatro Maria Matos, em Lisboa, nos dias 21 e 22 de fevereiro de 2014.

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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