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Reportagem

Espetáculo celebra legado de Lupicínio

11.2.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: João Caldas

Início da década de 1970, Curitiba natal. Nos primeiros anos de vida a atriz e cantora Anna Toledo foi acalentada pelos principais sucessos da música popular brasileira por meio da performance ao vivo da avó Léa Vargas. Ela era uma apaixonada pelo canto e legou à neta sonoridade e ritmo para radicar os ofícios do palco, do microfone e do estúdio de gravação tal qual realmente vingou na vida. Uma das reminiscências dessa educação pelos ouvidos veio do cancioneiro de Lupicínio Rodrigues.

O gaúcho morto há 40 anos e cujo centenário de nascimento será lembrado em setembro constava entre os compositores diletos da avó, que carregava os sambas-canção na ponta da língua e no coração. Pois ela foi influência seminal na formação do canto, das ideias e da carreira da autora do espetáculo Vingança, o musical, que reestreia no CCBB São Paulo após a bem-sucedida temporada inaugural de 2013.

Anna Toledo intuía que um espetáculo ancorado especialmente nas canções de Lupicínio, e não em sua biografia, mobilizaria o espectador com a mesma força que fez com que ele se tornasse artista popular de referência nos rádios e auditórios das décadas de 1940 e 1950. Cantava histórias arquetípicas de quem trai ou é traído. Impactava com narrativas universais sob medida. “Pelo menos até o advento da bossa nova, quando [a crítica e a indústria fonográfica] impuseram a ele a pecha da música cafona devido à temática dominante de dor de cotovelo”, afirma a atriz. A redescoberta aconteceu nos anos 70 quando os tropicalistas baianos Caetano Veloso, Gal e Gil passam a gravá-lo, seguidos de Elis Regina, Paulinho da Viola, Elza Soares e as gerações de Arnaldo Antunes e Ivete Sangalo.

Nada mais ancestral do que a traição. E dela Lupicínio entendia. Que o diga dona Cerenita, com quem foi casado desde a mais tenra juventude até a morte. O narrador condoído pelo abandono por causa própria ou alheia é uma espécie de persona que dá margem biográfica a tudo que compôs. Mas nem tudo são aventuras amorosas, como imprimiu em Exemplo, de 1960, imortalizada na voz de Jamelão, em que solta essa máxima entre os versos evocativos da possibilidade de um casal viver em harmonia: “Esse é o e exemplo que damos aos jovens recém-namorados/ Que é melhor brigar juntos/ do que chorar separado”. Boêmio de carteirinha acenando bandeira branca à mulher nos dez anos de união. Ela acolheu a letra como uma homenagem.

Como a canção-título, Vingança, o musical toma alguns clássicos ou letras pouco conhecidos do universo das paixões “lupicinianas” para recriá-lo num roteiro de fios dramáticos e bem humorados, de reviravoltas à maneira dos melodramas circenses ou radiofônicos. O mote do triângulo amoroso atravessa os espinhos e as flores de Maria Rosa, Esses moços, Volta, Nunca, Cadeira vazia, Nervos de aço, Felicidade e Se acaso você chegasse, algumas das pérolas pinçadas entre as cerca de 150 canções que editou. Estima-se que outra centena delas se perdeu ou está por ser resgatada.

Em cena evoluem três triângulos amorosos em que seus protagonistas têm sentimentos e desejos embaralhados por ironia do destino. A dançarina Maria Rosa, estrela do cabaré de Orlando, é quem catalisa os corações. Vive sob a proteção de Alves, um perigoso contraventor. Até conhecer naquela casa Liduíno, homem de família e boêmio notório com quem inicia um caso.

Liduíno é casado com Luzita, mulher reprimida, amargurada pela traição. A paixão que o melhor amigo do marido, Orlando, vem a nutrir por ela a faz revolver segredos do passado e pode usá-la também a seu favor. Há ainda a presença de Linda, empregada doméstica de dia, na casa de Luzita e Liduíno, e cantora da noite no mesmo cabaré de Orlando. Apaixonada por Alves, ela tenta afastá-lo de Maria Rosa a todo custo.

Musical leva à cena cancioneiro de Lupicínio RodriguesSem créditos

Musical evoca cancioneiro de Lupicínio Rodrigues

“É uma história que trabalha com muitas camadas. Com aquilo que é dito e é feito. Com aquilo que é pensado ou segredado com hipocrisia. Criar esse espelho da virada dos anos 40 para os 50 expõe o pensamento ultramachista da época, os preconceitos por parte dos homens e inclusive das mulheres. Mas não julgamos os personagens”, afirma Anna Toledo.

Entre as fontes para o roteiro, Anna Toledo mergulhou no cancioneiro. Nas crônicas que Lupicínio escreveu por um ano no jornal Última Hora (1963-1964), compartilhando bastidores de suas criações – vem de lá a passagem em que fulana diz que sicrana só conhece mudança de lua pela folhinha, porque não sai de casa à noite. E numa inspirada entrevista dada em 1973 ao lendário O Pasquim e cujo título não ficou para trás: “A dor de cotovelo é um barato!”.

No elenco, Anna Toledo, intérprete de Luzita, a vitimizada que dá o troco, contracena com artistas atilados no gênero musical. Amanda Acosta, Andrea Marquee, Jonathas Joba, Leandro Luna e Sérgio Rufino emprestam seus recursos vocais e corporais para conduzir o público nessa jornada sofisticada e despojada. A direção geral é de André Dias e a condução de movimento e coreografia, de Kátia Barros. Tudo embala ao vivo pelos instrumentos de Guilherme Terra ou Jonatan Harold (piano), Jeferson de Lima (violão) e Ricardo Berti (percussão), sob direção musical e arranjos de Guilherme Terra.

O cenário recorre a móveis e objetos pontuais na transição sutil dos ambientes cabaré, quarto de pensão e sala de família. Os figurinos trazem tons sóbrios para eles e cortes elegantes para ambos os sexos representados em saltos-altos e vestidos, chapéus, camisas e ternos.

Quando lembra que o espetáculo começou a ganhar corpo em 2008, com ambição comedida e braços estendidos do acaso, a idealizadora Anna Toledo se dá conta de que o ano do centenário de Lupicínio, este 2014, vem coroar a trajetória dessa equipe.

Há seis anos havia um convite para apresentar parte da obra de Lupicínio Rodrigues num festival de música de Antuérpia, na Bélgica. Aquela primeira pesquisa não rendeu frutos porque a participação no evento foi cancelada. A atriz e cantora seguiu em companhia da obra do compositor apresentando algumas das suas canções nos bares da noite ou registrando versões nos CDs dela – foram cinco no terceiro disco, Meu coração é… (2012).

Em 2011, aconteceu no Auditório do Masp uma primeira leitura cantada, um esboço do roteiro atual, já compreendendo a maioria dos artistas que o protagonizam. Até que a intimidade com essa obra cristalizou-se na produção e recepção de Vingança, o musical pelo Centro Cultural Banco do Brasil. Culminando agora em desdobramento do espetáculo em CD com as canções do repertório e livro com a íntegra da dramaturgia e partituras, além de imagens de cena.

.:. Publicado originalmente no site Ideias Online – Informação, Arte & Cultura Digital em 10 de fevereiro de 2014.

Vingança, o musical
Qua. a sex., às 20h. R$ 10. CCBB SP (r. Álvares Penteado, 112, Centro, São Paulo, tel. 11 3113-3651/3652. De 12/2 a 18/4.

Ficha técnica:

Canções: Lupicínio Rodrigues

Idealização e texto: Anna Toledo

Direção musical e arranjos: Guilherme Terra

Direção geral: André Dias

Com: Amanda Acosta, Andrea Marquee, Anna Toledo, Jonathas Joba, Leandro Luna, Sérgio Rufino e Guilherme Terra

Músicos em cena: Guilherme Terra (piano), Jeferson de Lima (violão) e Ricardo Berti(percussão)

Direção de movimento: Kátia Barros

Coreografias: Kátia Barros e Keila Fuke

Preparação corporal: Keila Fuke

Cenário e figurinos: Fábio Namatame

Designer de som: Fernando Fortes

Iluminação: Wagner Freire

Assistente de direção: Carla Masumoto

Assessoria de imprensa: Daniela Bustos e Beth Gallo – Morente Forte Comunicações

Programação visual: Cassiano Pires

Fotos: João Caldas

Camareiras: Alessandra Dornellas e Verônica Moraes

Contrarregra: Celso Dornellas

Operador de luz: Rafael Soares

Microfonista: Janice Rodrigues

Assessoria contábil: Marina Morente

Administração e assistente de produção: Jady Forte

Assistente de produção: Celso Dornellas e Thaís Peres

Produção executiva: Egberto Simões

Produtoras: Selma Morente e Célia Forte

Realização: Morente Forte Produções Teatrais

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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