Crítica
16.3.2014 | por admin
Foto de capa: Frederico Pedrotti
Sabe-se que cada forma implica um sistema de relações com o mundo, portanto, é também fundadora de sentidos. Assim, quando uma problemática como a da reelaboração artística de um passado político traumático assume formalizações muito distintas como em dois espetáculos presentes nesta Mostra Internacional de Teatro, as perspectivas do olhar apontam para abordagens éticas e efeitos distintos – sob certos aspectos, complementares.
Enquanto Guillermo Calderón assumiu uma representação de teor realista para a ditadura chilena em Escola, recontada sob o ponto de vista dos militantes da resistência popular armada, o sul-africano William Kentridge, diretor da Handspring Puppet Company, faz caminho inverso em Ubu e a comissão da verdade. O processo de denúncia dos crimes contra a humanidade cometidos pelos artífices do apartheid e de busca por uma reconciliação com os carrascos é resgatado por recurso a uma teatralidade exacerbada e fortemente satírica, na qual o protagonismo recai sobre a figura do torturador.
Além das diferenças evidentes entre os dois espetáculos, também no interior de uma só obra a concomitância de meios expressivos coloca em tensão diferenciações que resvalam no campo da ética e hão de ser percebidas pelo espectador como desdobramentos possíveis na produção de sentidos do espetáculo. O contraste se dá entre a construção caricatural de Ubu, o torturador, e sua esposa, ambos feitos por atores que investem em corpos estilizados de modo farsesco, que os desnaturaliza; e a representação das vítimas da violência racial como bonecos manipulados, ressaltando a força poética e lúdica desse meio expressivo.
A coexistência de personagens-atores e personagens-bonecos produz então um efeito de distanciamento maior em relação às vitimas, fundamental para a perspectiva que a encenação adotará: a Kentridge interessa jogar luzes sobre os atos dos agentes da violência. Iluminar suas distorções. Não opera uma identificação empática com a vítima mais do que uma necessária rejeição à atitude do agressor – capaz, espera-se, de impedir que a desumanidade se repita.
Criador do personagem Ubu, o francês Alfred Jarry (1873-1907) dizia que ele “representava todo o grotesco existente no mundo”. Dessa figura parte a dramaturga Jane Taylor para escrever o texto do espetáculo sul-africano, no qual o grotesco emerge como forma de expor a falta de sentido inerente às motivações e aos atos do torturador. Como observou o filósofo Vladimir Safatle em fala após a primeira apresentação, a forma farsesca serve à ridicularização das ações de tirania ao desconstruir pelo humor qualquer seriedade ou racionalidade possível.
Kentridge então recorre ao cômico e ao lúdico em uma encenação plena de recursos expressivos artesanais, entre os quais estão os títeres “humanos” e uma sorte de formas animais, com os quais reforça aspectos irracionais da trama. Utiliza também vídeos – suporte para a poesia de desenhos alegóricos, friccionada por trechos documentais de brutalidades cometidas durante o apartheid. Novamente, a coexistência das linguagens poética e documental no meio audiovisual evita que se instale o sensacionalismo de imagens violentas, em favor da imaginação – uma operação libertadora para o humano.
Tanto quanto Escola, também Ubu e a comissão da verdade gera reflexões diretas em relação à realidade política brasileira nestes 50 anos do Golpe Militar. Embora a Comissão da Verdade esteja vigente, historicamente não houve punição aos torturadores – e nada indica que haverá. Diante das criações chilena e sul-africana, reacende também o questionamento à produção artística do país, pouco problematizadora do destino dos agentes da ditadura e de suas consequências sobre a sociedade.
.:. Texto escrito para o Coletivo de Críticos, uma das ações do segmento Olhares Críticos na MITsp.