Crítica
24.3.2014 | por Ferdinando Martins
Foto de capa: João Caldas
Há 44 anos, Jesus Cristo superstar estreava na Broadway com ares de rebeldia. No reduto mundial do teatro musical mainstream, a ópera-rock de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice chocava com a nudez e a estética hippie usada para contar a bíblica história da vida de Jesus Cristo, homem-mito em torno do qual se erigiu a cultura ocidental, tão central que dividiu o calendário em antes e depois de seu nascimento. Um Cristo humanizado e sintonizado com as mudanças pós-maio de 1968.
A rebeldia, no entanto, evanesceu-se com o tempo e, hoje, o que era contestatório soa banal. Na atual montagem em cartaz em São Paulo, no Teatro do Complexo Tomie Ohtake, com direção de Jorge Takla, a transgressão está ausente, mas, em compensação, proliferam inovações técnicas e artísticas que deram novo frescor ao musical. “É uma versão clean, despojada e elegante”, diz o diretor. De “polêmico”, pífias manifestações de poucos católicos na porta do teatro no primeiro final de semana, conforme mostrou reportagem do jornal O Estado de S.Paulo.
Ainda que a recepção tenha mudado, é possível deleitar-se com a roupagem contemporânea garantida pela coreografia de Anselmo Zola, a direção musical de Vânia Pajares e os figurinos de Mira Haar e do próprio Takla. Além disso, a nova versão brasileira, feita por Bianca Tadini e Luciano Andrey, renova a antiga tradução feita por Vinicius de Moraes no início dos anos 1970.
Por exemplo, ao invés de ouvir “Jesus Cristo, Jesus Cristo/ Qual o valor do teu sacrifício?” no ensemble que conta a crucificação de Cristo, o público escuta os versos mais agradáveis “Jesus Cristo superstar/ Por que morrer para nos salvar?”. “Não fizemos uma adaptação, mas um trabalho de oito meses que começou do zero”, diz Takla. “A versão do Vinicius tinha o espírito da época. As gírias ditas há 40 anos hoje soam um pouco cômicas”.
Ana Pajares explica que a partitura original foi um ponto de partida, mas que sua versão é “mais atual, mais rock’n’roll”. “Depois de tudo que rolou nessas quatro décadas, não poderia ser diferente”. O heavy metal dos anos 1980 marca a montagem, bem diferente do blues e do jazz que singularizavam Jesus Cristo superstar nos anos 1970. E muito distante da bossa nova e da música de protesto na versão brasileira da mesma época. A diretora musical já foi maestrina do Teatro Municipal de São Paulo, mas diz que sempre teve rock’n’roll nas veias.
Essa mesma tentativa de fugir do estereótipo hippie marcante nas versões dos anos 1970 também é encontrada nos figurinos. Para Takla, há elementos medievais e renascentistas nos trajes. É possível ver também elementos da indumentária rock e peças bastante contemporâneas, como calças skinny, camisetas justas, assimetrias e maxi colares.
Anselmo Zola, conhecido por seu trabalho com dança contemporânea no Studio 3 e com a Companhia Sociedade Masculina, teve em Jesus Cristo superstar sua primeira experiência com atores e atrizes. “São corpos não preparados para a dança, mas com força, energia e juventude, o que proporcionou um resultado explosivo. É uma coreografia muito especial e pessoal, não é jazz, não é Broadway, mas sim movimentos para tornar possível o público se encontrar dentro do palco.”
Alírio Netto, que fez o papel de Jesus Cristo em uma montagem mexicana há 12 anos, candidatou-se para o mesmo papel, mas Takla o convenceu a, desta vez, ser Judas. Em seu lugar, Igor Rickli assumiu o protagonismo. Com uma musculatura bastante definida, teve traços suavizados no material de divulgação. Sua atuação, ainda que tecnicamente bem sucedida, em alguns momentos exagera em expressões faciais que visam comover o público. É assim que acontece quando canta Getsêmani, momento delicado da peça quando Jesus, percebendo que está chegando o momento de sua morte, conversa com Deus. Negra Li faz Maria Madalena. Ela, que na infância cantava hinos na igreja evangélica Congregação Cristã no Brasil e depois se tornou a voz da contestação do rap paulistano, diz que as mulheres de Jesus Cristo superstar “são quase manos”.
Sobre as manifestações contra Jesus Cristo superstar, Takla lembra que “sempre houve muitas versões sobre a vida desse homem”, mas que a arte quebra com velhos valores. “O Brasil é um país laico e a arte sempre é polêmica. Temos o direito de nos expressar. Nas imagens religiosas, Jesus Cristo aparece muitas vezes quase nu, e nós o vestimos com uma calça jeans”, completa.
Serviço
Onde: Teatro do Complexo Ohtake Cultural (Rua dos Coropés, 88, Pinheiros, São Paulo)
Quando: Quinta e sexta, às 21h; sábado, às 17h e 21h; domingo, às 18h. Até 8/6
Quanto: R$ 50 a R$ 230
Duração: 130 minutos em dois atos (com intervalo de 15 min.)
Ficha técnica
Direção artística: Jorge Takla
Direção musical: Vânia Pajares
Elenco: Igor Rickli, Negra Li, Alírio Netto, Fred Silveira, Wellington Nogueira, Rogério Guedes, Júlio Mancini.
Ensemble: Alessandra Dimitriou, Beto Sargentelli, Beto Sorolli, Cadu Batanero, Daniel Caldini, Fellipe Guadanucci, Fernando Lourenção, Gabriel Camilo, Jhafiny Lima, Marcelo Vasquez, Marisol Marcondes, Murilo Armacollo, Nathália Mancinelli, Olivia Branco, Paula Miessa, Philipe Azevedo, Renato Bellini, Sandro Conte, Thati Abra, Thiago Lemmos, Tinno Zani.
Coreografia: Anselmo Zolla
Versão brasileira: Bianca Tadini e Luciano Andrey
Cenografia: Jorge Takla e Paulo Correa
Figurinos: Jorge Takla e Mira Haar
Designer de som: Fernando Fortes
Designer de luz: Ney Bonfante
Visagismo: Duda Molinos
Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).