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Crítica

O poder subversivo da contracultura formal

16.3.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Valentino Saldívar

Os procedimentos dramatúrgicos e cênicos de Guillermo Calderón em Escola combinam elementos épicos e dramáticos que potencializam uma teatralidade feita de sutilezas e impurezas nas angulações crítica e política em que se anuncia. Seu mote é um achado, e explosivo. Ao circunscrever o treinamento dos integrantes de uma guerrilha em tempos de ditadura militar, o espetáculo dá margem para pensar noções de ideologia e de engajamento à luz dos dias que correm, quando o espaço público retoma vocação para a ágora em que manifestantes se fazem escutar.

Mas não se espere por abordagens históricas e socializantes elementares ou militantes, apenas. Elas vêm sob traços estéticos rigorosos nas mãos desse artista chileno nascido em 1971 e notabilizado pela estruturação ética e política de suas montagens.

Calderón é persuasivo ao visitar a cultura autóctone, a expressão popular, as ideias da militância de esquerda e o combate às sequelas do estágio atual do capitalismo justamente em tempos de crise de representatividade, refratários às ideologias. Os hinos revolucionários, o cancioneiro de evocação ao povo mapuche, os capuzes dos jovens movidos pela utopia são alguns dos aspectos mediadores da encenação.

A obra estabelece uma contracultura formal às expectativas pragmáticas suscitadas pelo tema. Desdramatiza os mecanismos didáticos, relativiza as tensões e rompe com a ilusão ao mesmo tempo em que dispõe documentos ou dados, às vezes projetando-os literalmente, inscrevendo imagem ou palavra no corpo dos atores. Essas transições são demarcadas pela gestualidade ou pela simbiose de luz e de cenário mínimos que delimitam o tempo e o espaço. A sugestão é de que estamos na década de 1980, sob as ordens do general Pinochet, mas o contexto é perfeitamente móvel em se tratando das realidades geopolíticas, principalmente no continente latino-americano.

Apesar da frontalidade do palco, o espectador trabalha com a visão de arena como espaço cênico. Não é incomum algumas dessas figuras postarem-se de costas para o público. Um círculo formado por bancos, cadeiras. Ao fundo, uma lousa. Há sempre um instrutor a conduzir os aprendizes com o discurso das estratégias e táticas de ação.

Esse caráter expositivo das aulas é a deixa para que a verve de Calderón aflore. As técnicas de aprendizagem no manuseio de arma ou de um artefato explosivo são rudimentares em que pese os argumentos fundamentados sobre a injustiça do regime de exceção a ser combatido. À missão conjecturada, a dramaturgia desarma-se da austeridade para desaguar momentos patéticos, um deles em clara referência ao bem-humorado e não menos corrosivo No (2012), filme de Pablo Larraín focado na campanha publicitária do plebiscito nacional que definiu o destino da ditadura no poder. São nessas contradições que enxergamos os revolucionários mascarados como seres falíveis em sua humanidade.

Escola sintetiza a capacidade de Calderón na economicidade do que tem a dizer e como o faz. Em sua trajetória recente, o teatro político não comporta a mensagem, antes a centelha do problema. Não abdica do componente ideológico em sua mirada e espera encontrar interlocutor disposto a enfrentar esse material sombrio do passado e do presente a partir das chaves do jogo teatral objetivo. Para tanto, o quinteto de atuadores conjuga o processo artístico ao processo histórico com solidez e consciência vigilantes no tablado, como podem os melhores comediantes confrontados à dimensão trágica da existência.

.:. Texto escrito para o Coletivo de Críticos, uma das ações do segmento Olhares Críticos na MITsp

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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