Reportagem
25.4.2014 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Humberto Araujo - Clix/FTC
Drama. Comédia. Tragédia. Não é fácil achar um consenso quando se trata de classificar Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Na mais conhecida obra do norte-americano Edward Albee, todos os gêneros se confundem. “O próprio autor dizia que gostaria de ver o público assistindo à peça uivando de rir, mas sentindo dor”, lembra o diretor Victor Garcia Peralta.
No espetáculo, que estreou no Rio em 2013 e chega hoje a São Paulo, Zezé Polessa e Daniel Dantas encarnam um casal que não hesita em expor, diante de estranhos, a teia de ódio e ressentimentos na qual está enredado. “Eles são muito teatrais. Usam um casal mais jovem que apareceu para poder representar o seu jogo”, considera a atriz.
Dentro do campus de uma universidade americana, vivem Jorge, um professor de história, e Marta, a filha do reitor. Uma noite, eles recebem em casa os jovens Nick (Erom Cordeiro) e Mel (Ana Kutner). Eis o cenário perfeito para que comecem a trocar ofensas. E também a destruir a aparente harmonia que existe entre o casal convidado.
Um dado biográfico contribuiu para construir as interpretações dos protagonistas. Separados há alguns anos, eles já foram casados na vida real. “E essa intimidade prévia nos ajudou muito. Brigar, por exemplo, era muito fácil para nós”, crê Daniel. Na versão cinematográfica de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, lançada em 1966, os atores Elizabeth Taylor e Richard Burton também eram casados.
O que parece uma simples briga conjugal vai ganhando camadas à medida que o enredo avança. Segredos são revelados. A máscara de inocência dos mais jovens mostra-se pura hipocrisia. O sentimento amoroso perde sua aura de pureza para surgir como uma força destrutiva e impiedosa.
A personagem de Zezé Polessa não tem pruridos em humilhar o marido. Insinua-se para o estranho que está em casa e, por fim, termina por revelar um dado de suas biografias que permanecia intocado. A vingança de Jorge não será branda.
Ao público, é permitido assistir a essa “carnificina” íntima tal qual um voyeur. A cenografia de Gringo Cardia ambienta a sala da casa dos anfitriões em um palco giratório. “Minha ideia era que os espectadores se sentissem observando as cenas pelo buraco da fechadura”, diz o encenador.
Mesmo aos 86 anos, o afamado dramaturgo mantém-se ativo e zeloso de seu legado. Foram três anos de negociações para conseguir os direitos da peça. Objeto de uma série de montagens, no Brasil e no exterior, o texto foi escrito em 1962, mas continua a chocar pela virulência de seus diálogos e pela violência das situações apresentadas.
Para a atual montagem, o título mereceu uma nova tradução. “Muito coloquiais, os diálogos perdem a atualidade com o tempo, por melhor que seja a tradução”, comenta João Polessa Dantas, filho de Zezé e Daniel, que assinou a versão para o português.
Mas a tradução renovada não resultou em adaptação e a trama continua a se passar nos anos 1960. “Não gosto dessas atualizações sem propósito. Procurei uma neutralidade”, argumenta o direto
>> Peça é uma história de amor, diz a atriz Zezé Polessa
Na peça, os personagens de Marta e Jorge sustentam um jogo muito cruel. Mas algo os une. Essa é uma história de amor?
Sim. E eu nem acho que seja uma história de amor cruel. É só uma história de amor. Não é um amor romântico, açucarado. Mas uma história com todas as agruras do casamento. Agora, o que chama atenção nesse jogo é que ambos estão jogando com a mesma força. Mesmo sendo uma peça dos anos 1960, de uma época em que a mulher tinha uma outra condição, ela joga com ele de igual para igual. Ela fala coisas que mesmo hoje as mulheres não falam.
Ela não tem nenhum pudor?
Marta vai adiante sem medir as consequências. Ela é muito visceral, muito intempestiva. Muito pouco racional. Ela se diz mesmo uma mãe terra, uma espécie de deusa, extremamente violenta nas suas provocações.
Fica a sensação de que essa não é a primeira vez que eles estão expondo as entranhas do seu relacionamento publicamente. Por que fazer isso?
Eles também querem ver até onde vai esse jogo. Em cada nova exposição, é como se eles dessem um passo a mais. Nessa noite eles dão uns saltos e vão além.
No contexto dos anos 1960, em que se passa a peça, as mulheres ocupavam um lugar muito diferente. Não trabalhavam, não tinham certos direitos. Como você vê isso no espetáculo?
É um momento de transição. Logo que começamos a estudar a peça, eu ficava indignada. Ela fica infernizando esse homem para realizar um sonho que é dela. Por que ela não estudou e fez o que queria? Mas a gente tem que se lembrar que as coisas não eram assim.
>> Permanece o desequilíbrio entre casais, diz o ator Daniel Dantas
Os conflitos mostrados na peça envelheceram?
Existem coisas nessa história que envelheceram muito menos do que a gente imagina. Ainda que as mulheres tenham feito muitas conquistas do ponto de vista legal e formal, muitas coisas ainda não foram completamente dissipadas da cabeça das pessoas. É muito fácil ainda reconhecer esse desequilíbrio interno, em que existe um provedor dentro do casamento. Mesmo em casais pretensamente modernos. E esse equilíbrio é difícil mesmo de conseguir. Não é porque existem leis que não vai existir ali dentro alguém que manda. Essa relação que é basicamente patriarcal continua. E essa não é uma coisa que se dissipa tão facilmente. O que torna a peça muito viva.
Existe um casal mais jovem que observa os excessos de Marta e Jorge. Qual o lugar desse outro casal na peça?
Algumas interpretações veem esse casal mais jovem como um embrião de Marta e Jorge, como se víssemos como eles eram antes de ficarem assim. Outra leitura possível é vê-los como a plateia. Eles são a plateia necessária para os dois fazerem o seu número e também representam o que o público que está assistindo ao espetáculo está sentindo. Uma espécie de espelho.
Marta e Jorge se alimentam de que maneira dessa exposição? O que ganham com isso?
Eles ganham a própria chance de jogar. Se você pensar, não existe coisa mais sem sentido do que um esporte. O que significa alguém correndo atrás de uma bola para colocá-la dentro de uma rede? Não muito. É uma característica dos jogos eles terem sentido em si. É um pouco como a vida. Não tem muito sentido. A gente é que vai inventando.
.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C1, em 25/4/2014.
Serviço:
Quem tem medo de Virginia Woolf?
Quando: Sexta, às 21h30; sábado, às 21 h; e domingo, às 18h. Até 27/7.
Onde: Teatro Raul Cortez (Rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista, São Paulo, tel. 11 3254-1631).
Quanto: R$ 60 e R$ 90.
Ficha técnica:
Texto: Edward Albee
Tradução: João Polessa Dantas
Com: Zezé Polessa, Daniel Dantas, Erom Cordeiro e Ana Kutner
Direção: Victor Garcia Peralta
Direção de arte, cenografia e programação visual: Gringo Cardia
Iluminador: Maneco Quinderé
Figurinos: Marcelo Pies
Visagismo: Fernando Torquatto
Trilha sonora: Marcelo Alonso Neves
Produção executiva: Carmem Oliveira
Direção de produção: Giuliano Ricca
Produtores associados: Zezé Polessa e Giuliano Ricca
Realização: MJC Polessa Produções Artísticas e Ricca Produções Artísticas
Assessoria de comunicação: Morente Forte Comunicações
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.