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Crítica

Flagrantes de Billie Holiday sem filtro

11.4.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Divulgação - Dezoito Zero Um Cia. de Teatro

Para quem não é de Curitiba, ver Cássia Damasceno em cena constitui boa surpresa em relação à imagem dominante de seu trabalho como produtora executiva da Companhia Brasileira de Teatro nos últimos anos, em processos criativos locais e circulações por outros estados e países. Ela nunca está em cena. Surpreende duplamente encontrá-la sob a guarida de outro núcleo, Dezoito Zero Um – Cia. de Teatro, e protagonizando Billie, alusões fragmentárias ou flagrantes da biografia da intérprete norte-americana Billie Holiday (1915-1959).

O texto e a direção de Alexandre França escapam da hagiografia para furar a aura da diva internacional e aproximar-se, tocar a pele da mulher em sua demasia humana. A passagem de som de um show ou a gravação em estúdio, em ambiente intimista – como aqueles que o Brasil conheceu exemplarmente nas performances de Elis Regina, sem filtro ou papas na língua diante das câmaras ou microfones –, servem de plataforma para a criação estilizada do banquinho e microfone.

Nesse trabalho a um só tempo acústico e sonoro, a atriz serve ao projeto da encenação que dissipa a representação e joga suas fichas na atmosfera, na potência em que as silhuetas corporal e facial são delineadas pela luz excepcional de Beto Bruel. A metamorfose do rosto nos primeiros minutos da obra, sua narrativa de revelação, atinge níveis do sagrado que nada têm a ver com religião e pertencem à ordem do espírito.

Billie é um projeto espirituoso em seu formalismo. É notável o carinho para com a biografada e a licença em chamá-la para um experimento cênico de pouco mais de meia hora que extrai o frame de uma vida para abraçá-la apertadamente. Um equivalente de Elza Soares trilharia igual caminho se ponderasse a ambição artística sem concessões.

Para a gravação ao vivo da canção e dos comentários que acionam os canais da emoção da escuta e do afeto, França incrusta o blecaute, o deslocamento imprevisto para o corredor da plateia na primeira sessão do miniauditório Guaíra, no Fringe de Curitiba, e a voz dos homens (produtores/empresários) que a fazem de títere, recursos estes acessados como teatralidades sutis.

Afinal, estamos falando de uma mulher de registro vocal poderoso e de estrutura emocional frágil, codependente do sucesso e dos profissionais que a sugam de acordo com as regras do sistema, do star business. A fuga pela droga é outra via escancarada, mas não explorada feito um paparazzi. Em vez da mimese, Damasceno sugere. A voz, no entanto, ainda que pouco exigida, precisa encorpar à altura o peso e a elaboração nos conformes dessa celebração solo.

A negritude, como a de Holiday, não vem como decalque a priori. Novamente, a forma não demove a organicidade de quem atua e de quem a complementa de fora, o encenador e as falas ao vivo e off de Diego Fortes e Otavio Linhares, ecoadas da cabine. Ao cabo, é ela, a voz, radiofônica ou não, que emana as sonoridades multifacetadas dessa montagem esboçada como promessa de longa jornada noite adentro da alma e da artista em foco.

Ficha técnica:
Texto e direção: Alexandre França
Com: Cassia Damasceno
Vozes ao vivo: Diego Fortes e Otavio Linhares
Realização: Dezoito Zero Um – Cia. de Teatro

Teaser da obra apresentada no Fringe:
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=fcBf03AF5KM

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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