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Crítica

Identidade em foco na dramaturgia de Bartlett

1.6.2014  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Renato Mangolin

O público carioca está tendo a oportunidade de entrar em contato com a dramaturgia do inglês Mike Bartlett por meio de duas montagens, Cock – Briga de galo, em cartaz no Teatro Poeira, e Contrações, em temporada no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil. A partir desses dois textos, dados gerais, tanto no âmbito estrutural quanto no temático, sobressaem logo de início: na primeira esfera, a tendência a priorizar frases curtas e poucos personagens; na segunda, o destaque ao aumento da pressão sobre um personagem, que faz com que a ação evolua rumo a um clímax.

Em Cock – Briga de galo, um rapaz hesita retomar o relacionamento com o namorado – opção que representa a acomodação, apesar de a consciência do apego ao conhecido suscitar incômodo – e o comprometimento recente com uma moça – símbolo do eventual risco a uma desestabilização. Em Contrações, a funcionária de uma grande empresa é levada a descortinar a sua intimidade diante da gerente, dedicada a seguir à risca os mecanismos de controle da corporação.

Enquanto Cock fecha o foco em torno de um conflito pessoal do protagonista, que precisa tomar uma decisão intransferível, Contrações não expõe uma dúvida da personagem, mas sua derrocada em virtude da perda da privacidade a partir da imposição de regras opressivas de vigilância. No primeiro texto, as circunstâncias políticas, sociais e econômicas do meio exterior não reverberam de modo marcante nos personagens; no segundo, o fantasma do desemprego, da falta de perspectiva profissional num panorama agressivo, impulsiona a funcionária na direção das atitudes mais absurdas. Seja como for, os personagens de Bartlett tendem a sucumbir diante da pressão do mundo, interno ou externo. Eles se encontram em busca ou em crise com a própria identidade, questão espelhada na identificação de cada um – ou justamente na abreviação ou inexistência.

Em Cock, o único personagem com nome é John, o rapaz que oscila entre o antigo namorado e a nova relação com uma mulher. Ambos são identificados por iniciais – respectivamente, M e W –, assim como F, pai de M. Esta medida não decorre de uma tentativa de assinalar a falta de personalidade dos três, mas de ressaltar que toda a ação gira em torno da necessidade de John chegar a uma decisão e assumi-la. Em Contrações, a funcionária possui um nome, Emma, ao contrário da gerente, que não parece ter vida própria para além do cotidiano na empresa.

Centradas em embates crescentes, as peças, porém, têm construções distintas. Em Cock, o autor apresenta ao espectador a situação-base (John já dividido entre M e W) para, então, mostrar o vínculo com ela. Boa parte das cenas é constituída pelo embate entre dois personagens (não por acaso, as cenas são emolduradas por som de ringue). A inclusão de mais personagens numa mesma passagem, que acontece à medida que o espetáculo avança, gera aumento de tensão. Em Contrações, existem apenas duas personagens, do começo ao fim, que se encontram ao longo de diversas reuniões realizadas em curtos espaços de tempo, mencionados, mas suprimidos, como se tivessem sido montadas numa sucessão ininterrupta.

Em diferentes graus, as diretoras – Inez Viana, de Cock, e Grace Passô, de Contrações – obedecem e operam sobre as rigorosas estruturas dos textos de Bartlett. Inez Viana segue a determinação do autor, no que se refere à ausência de elementos cenográficos (lembrando que a ausência não deixa de ser uma proposta cenográfica). Uma característica que, inclusive, se aproxima da sua personalidade como diretora, a julgar pelo palco quase destituído de adereços de Nem mesmo todo o oceano e pela exatidão na escolha dos elementos em As conchambranças de Quaderna. Em Cock, Flavio Graff responde pela concepção espacial em que o público, distribuído em arena, envolve a cena, que se torna mais opressiva devido à luz rebaixada (iluminação de Renato Machado). Grace Passô realça a artificialidade do contrato de relação imposto pela gerente através da exposição da construção da cena: a trilha sonora (de Dr. Morris) é produzida diante da plateia e os sons potencializam o não-dito.

Falabella e Novaes dirigidas por Passô em ‘Contrações’

Grace problematiza, em Contrações, o realismo da configuração espacial (a cenografia de André Cortez reconstitui o clima impessoal da sala de uma corporação), seja por meio da presença da equipe no palco, seja do rompimento da parede da sala em instante catártico, no qual Emma cobre os braços de terra. A situação, apesar de atada a uma circunstância concreta da peça, remete a Amores surdos, espetáculo que contava com dramaturgia de Grace, que ainda estava em cena como atriz. A diretora reitera a crescente anulação de Emma através da postura cada vez mais curvada da atriz Débora Falabella. E sublinha a atmosfera asséptica da corporação – onde Emma, em sua escalada profissional, atravessa jornada trágica até se assemelhar à gerente e incorporar a ideologia da empresa – por meio de aumento da fumaça que confirma progressiva queda na temperatura propiciada pelo ar-refrigerado. Os figurinos também seguem as indicações (devidamente apropriadas) dos textos. Em Cock, Júlia Marini realça os perfis dos personagens, com criação questionável para M. Em Contrações, André Cortez aproxima (as estampas dos vestidos) e, ao mesmo tempo, distancia as personagens através dos trajes, mais joviais para Emma, mais formais para a gerente, assinalando, no caso desta última, sua posição de poder.

Os personagens ganham contornos bem perceptíveis dos atores, que apresentam rendimento mais irregular em Cock do que em Contrações. Na primeira montagem, Felipe Lima procura reagir às contracenas e imprime entonação “cantada”, característica que vem se tornando sua marca como ator. Marcio Machado, mesmo projetando a insegurança do personagem através do sarcasmo e de sinais físicos (mãos trêmulas), incorre em exageros que explicitam certo descontrole na administração de seus recursos interpretativos. Débora Lamm demonstra admirável organicidade na transição entre estados emocionais e emprego preciso da palavra. Hélio Ribeiro frisa a inconveniência do pai. Em Contrações, espetáculo do Grupo 3 de Teatro, Yara de Novaes e Débora Falabella formam uma dupla equilibrada, ainda que a primeira revele uma atuação particularmente expressiva. Dona de porte impositivo e autoridade vocal, Yara valoriza nuances da personagem (um momento de irritação, outro de quase emoção), enquanto que o bom trabalho de Débora fica, em parte, condicionado ao encaminhamento linear da personagem dentro do texto. Cock e Contrações são montagens que merecem a atenção do público do Rio de Janeiro.

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Serviço:
Contrações
Onde: Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66, Rio, tel. 21 3808-2020).
Quando: Quarta a domingo, às 19h30. Até 13/7.
Quanto: R$ 10.

Ficha técnica:
Direção: Grace Passô
Texto: Mike Bartlett
Com: Débora Falabella e Yara de Novaes
Iluminação: Alessandra Domingues
Figurinos: André Cortez
Cenário: André Cortez
Trilha sonora: Dr. Morris

Serviço:
Cock – Briga de galo
Onde: Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104, Rio, tel. 21 2537-8053).
Quando: Terça a quinta, às 21h. Até 24/7.
Quanto: R$ 40 (ter. e qua.) e R$ 50 (qui.).

Ficha técnica:
Direção: Inez Viana
Texto: Mike Bartlett
Com: Felipe Lima, Marcio Machado, Debora Lamm e Hélio Ribeiro
Iluminação: Renato Machado
Figurinos: Júlia Marini
Espaço cênico: Flávio Graff
Trilha sonora: João Callado

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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