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Crítica

O rumor das línguas do medo

1.6.2014  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Guilherme Bonfanti

Ao contrário do que pode sugerir o título – Dizer o que você não pensa em línguas que você não fala – a encenação dirigida por Antônio Araújo na Bélgica ultrapassa a questão da babel de idiomas e do atrito entre culturas.  Com atores brasileiros, belgas e franceses integrando o elenco, trata-se de uma coprodução entre o Festival de Avignon, da França, e o Teatro Nacional de Bruxelas, cidade onde o espetáculo estreou há seis dias para curta temporada. Se, em cena, diferentes línguas efetivamente se fazem ouvir – francês, inglês, flamengo, português e suaíli (falado por povos da costa leste africana) –, o que está em jogo de fato são os discursos historicamente construídos. Desde os ideológicos aos religiosos, passando pelos amorosos. Os territórios culturais instáveis que propiciam o surgimento de vozes desencontradas, assim como seu emudecimento ou amplificação, estão no cerne da obra multissensorial e deambulatória – marca de identidade da linguagem do Teatro da Vertigem e cujo ponto de partida temático é a crise financeira europeia e sua interferência no modo como a vida das pessoas se organiza.

Com texto de Bernardo Carvalho, o novo trabalho do grupo brasileiro, desta vez todo criado no exterior, tem como espaço de encenação o prédio da Bolsa de Valores de Bruxelas. Como já ocorrera na dramaturgia de BR-3, a parceria entre diretor e autor resulta em narrativa que elege trajetórias humanas como condutoras do olhar e da sensibilidade do espectador. Em tempos de “crise de representação”, um dos problemas contemporâneos abordados no espetáculo, o Teatro da Vertigem mantém mantém o investimento no núcleo ficcional, ou seja, os atores incorporam personagens, há diálogos interpessoais e até mesmo a quarta parede tem vez, aquela separação imaginária entre palco e plateia.

Na poética desse grupo, o traço de singularidade de sua estética está na forma como se contrapõem a ficção e o espaço real de sua representação, sempre cuidadosamente escolhido de modo a ter potencial para atravessar, interferir e alterar a própria concepção do dispositivo cênico – termo tomado aqui para definir todos os procedimentos criativos, da direção à dramaturgia, da cenografia ao desenho de luz e de som que,  moldados simultaneamente nas obras do Teatro da Vertigem, se configuram como um disparador de sentidos para o espectador.

Em Dizer o que você não pensa… o atrito entre ficção e realidade surge logo no início da apresentação, antes ainda da entrada no imponente prédio da Bolsa de Valores, construído entre I868 e 1873, num momento de expansão capitalista, e situado próximo à histórica praça central, a famosa Grand Place e seu conjunto arquitetônico grandioso. Atualmente, toda essa área da cidade é diariamente tomada por uma multidão de turistas fotografando sem cessar, músicos exibindo sua arte por trocados e pedintes de todas as nacionalidades e faixas etárias. Nessa paisagem humana, a escadaria do prédio desativado se tornou uma espécie de zona cinzenta onde não é incomum observar bêbados que discursam para si mesmos, algum movimento de comércio aparentemente ilícito, além de turistas desavisados consultando seus mapas.

Ali, nos degraus superlotados, a encenação começa por obrigar o espectador a atravessar uma ficcional instalação SDF (sigla para “sem domicílio fixo”), como se diz por aqui em referência aos sem-teto e seus acampamentos urbanos improvisados. As barracas de lona coloridas, os figurinos, os gestos por vezes agressivos dos atores (são sete, fazem parte de um coro, representam os sem-teto neste momento inicial e irão se desdobrar em muitas outras figuras no decorrer da encenação) e a opção pela mimese em vez da estilização provoca visível incômodo. Depois de algum tempo de espera, abre-se o portão de ferro, evidentemente inexistente na origem do prédio. Somente o público pagante entra e, de pé, acomodado no estreito pátio que o separa da porta de entrada, passa a acompanhar o início da apresentação. Os SDF ficam de fora, os fictícios e os reais, mas não sem protestar: os atores por determinação e, vez por outra, também os frequentadores, alguns quase moradores, da escadaria. Tudo o que acontece diante da fachada do prédio permanece visível e audível também para quem está do lado de fora da grade. E vice-versa. Quem está dentro segue ouvindo o burburinho dos excluídos. Na ficção, a cena inicial reproduz o controle de passaporte de um aeroporto. Assim, uma dupla fronteira se estabelece.

Fachada da Bolsa de Valores em Bruxelas

A abertura do espetáculo foi tema de um debate ocorrido após a sessão do dia seguinte à estreia. Uma senhora manifestou sua rejeição à cena SDF e questionou o diretor, imediatamente aplaudida por outra espectadora, sobre o que ela parecia acusar de exploração da miséria: “Por que colocá-los lá se depois você só deixa entrar os pagantes?”. Em sua resposta, aplaudida por muitos, Araújo falou sobre o desejo de levar ao espaço público ao menos parte do trabalho e de como o procedimento reforça uma fronteira que é real.

O hábito faz tratar como natural o que é ordem da cultura. Vale também para a existência de edifício teatral e para a passagem do cidadão ao espectador dada pela compra do ingresso. O ato criador, nesse caso, não parece movido pela intenção “politicamente correta” de oferecer teatro aos sem abrigo e menos ainda de chocar a burguesia, mas de fissurar sedimentos. Se o espectador tivesse de passar apenas pelos SDF reais provavelmente o faria com leve incômodo e alguma gentileza, e até mesmo tentaria dizer o que não pensa em língua que não conhece como senha para passar incólume.

O ruído dos SDF pode ainda provocar crítica de ordem estética, em especial vinda do espectador iniciado nas experimentações contemporâneas. Para esses, o problema pode estar na representação mimética, na ficção por demais colada à realidade e aparentemente precária em termos de elaboração. Porém, uma formalização abstrata – como a que surge mais adiante no espetáculo, com uso de máscaras e movimentação em câmara lenta em meio a gritos lancinantes provocados por um atentado à bomba – se realizada naqueles degraus, provocaria talvez um efeito de estetização da miséria? Deixaria o frequentador da arte contemporânea em uma zona de conforto da qual é retirado pelo xingamento tosco e direto daqueles SDF mimetizados? São indagações, sem resposta segura.

Desde o primeiro momento do projeto o grupo queria tratar a crise financeira europeia pela abordagem das relações humanas. A cena de abertura se dá com uma dupla de atores suspensa sobre o portão de ferro. Envolve um agente da imigração (Nicolas Gonzales), sua mulher grávida (Vanja Godèe – uma atriz que se reveza em várias mulheres e demonstra incrível capacidade de humanizar e singularizar figuras desenhadas com poucos traços) e traz à tona elementos que serão retomados ao longo do espetáculo. Uma atmosfera de medo e de ameaça perpassa toda a encenação e já se faz presente na cena do casal, cujo diálogo é revelador da especulação imobiliária que empurra para a periferia e do risco da aposentadoria compulsória, com a consequente queda de poder aquisitivo, como provocadores do sentimento difuso de que os estrangeiros, imigrantes ou mesmo turistas, são os culpados pela crise.

Diferentemente do argumento exposto no texto anterior publicado aqui no Teatrojornal – escrito antes da experiência da autora enquanto espectadora da referida produção –, no qual inferi que a encenação desenharia uma espécie de arco da civilização à selvageria, algo como a angústia da derrocada econômica conduzindo à ferocidade da luta pela sobrevivência, na verdade o que está posto em jogo na abordagem do Teatro da Vertigem para a crise europeia é a manipulação cultural do medo. É a disseminação do temor que provoca o retrocesso nacionalista e a valorização dos mitos de origem cultivados (inventados?) no período de formação dos estados nacionais europeus. Neles se apoia o agente da imigração ao falar com a companheira sobre o solo e o idioma pátrios.

A oposição entre segurança e liberdade é a eterna dor de cabeça dos filósofos, afirmou numa entrevista  Zygmunt Bauman. A insegurança cria muros, o desejo de liberdade os derruba. Na encenação, o medo se concretiza, por exemplo, na cena de um pai que, ameaçado de perder o emprego, chega ao extremo do assassinato em família provocado pela incapacidade de compreender a voz da própria filha. Dramaturgia e procedimentos cênicos reforçam a crítica aos mitos de diferentes matizes trazidos à cena por personagens como o jovem de ideias nacionalistas (Vincent Hennenbick) e o pastor evangélico (Roberto Audio) em sua sanha de transformar teatros em igrejas – ambos muitos bem desenhados por seus intérpretes.

Cena da coprodução internacional do VertigemGuilherme Bonfanti

Cena da coprodução internacional do Vertigem

Como fio condutor da trama, o espectador acompanha a trajetória de uma economista brasileira cujo percurso inicia com a segurança de quem é fluente na “língua dos acadêmicos” de formação humanista e termina na mais extrema perplexidade. Interpretada pela belga Claire Bodson, a personagem que nascera em Bruxelas durante o período em que seu pai (Didier De Neck) ali vivera como exilado da ditadura militar brasileira está de volta à cidade como convidada para participar de um congresso no qual vai falar justamente sobre a crise financeira. Junto traz o pai, pois acredita que ao rever lugares e pessoas ele possa se livrar da mudez sem diagnóstico que o silenciou dois anos antes. Porém, será a ela que o espectador acompanhará em uma espécie de descida a territórios subterrâneos que provocará um desvio torto no seu percurso.

O recurso dramatúrgico que faz com que a economista atravesse a metrópole “ouvindo vozes” tem a qualidade de tornar audíveis e visíveis línguas emudecidas sob ameaça ou veladas pela consciência de seu teor tóxico e destrutivo. Só ela compreenderá o medo como motor da ação de quem extermina estrangeiros na calada da noite. A atriz tem a tarefa mais difícil do espetáculo, pois é sua a mais contundente transformação que terá de expressar sem palavras. Cabe a ela ouvir e (quase) não falar. Fica mais confortável nas contracenas, quando pode contar com o apoio do quarteto de atores Jean-Pierre Baudson [foto no alto do artigo], um veterano capaz de um toque preciso de humor nas cenas mais improváveis, Gonzales, Heinnebicq e Vanja.

Porém, nem sempre a dificuldade é superada, como na cena situada em uma das instalações mais interessantes da cenografia de Thiago Bortolozzo, a que reproduz um bar, não por acaso escolhida para estampar o cartaz do espetáculo. Em uma das laterais o espectador vê o bar às avessas, banheiro com seus esfregões e engradados empilhados avançam pela plateia; dois homens dançam lentamente; mulheres bebem em silêncio em uma mesa “colada” ao banheiro. A tônica de decadência e irrealidade que poderia contribuir para valorizar o contraste na imagem espelhada entre a acadêmica e o executivo corrompido se esgarça pela opção do diretor de transformar silêncio dela em uma espécie de catatonia que a leva ao extremo de se deixar tocar intimamente sem expressar qualquer reação. Se a atitude parece descolada da trama, quem acompanha a trajetória do diretor sabe que arestas muitas vezes são para ele bem-vindas à criação artística.

As vozes ouvidas pela protagonista nas zonas cinzentas da metrópole justificam poeticamente as duas pontas de sua trajetória, da certeza à dúvida. Contudo, por vezes o traçado remete o espectador à “confusão de línguas” prometida pelo pastor. Alguma dose de ambiguidade é sempre bem-vinda, porém se acentuada, confunde e se torna ruído – uma fronteira de difícil delimitação, é preciso admitir. Se há certa opacidade no traçado, há também a grande qualidade de fazer ressoar, na reta final, a necessidade de calar tanto velhas certezas como novos medos. Talvez só com algum silêncio e muita escuta seja possível construir uma nova cultura e, consequentemente, uma nova língua comum.

A francesa Claire Bodson interpreta a filhaGuilherme Bonfanti

Vanja Godèe é filha cujo discurso pai não compreende

Mais uma vez no Teatro da Vertigem a iluminação de Guilherme Bonfanti é parte expressiva da encenação. É significativo como a luz sonega ao espectador a apreciação da arquitetura monumental, primeiro e evidente desejo de quem entra no prédio, e em especial do espectador retirado do seu espaço habitual, o Teatro Nacional, cujos assinantes são a imensa maioria do público pagante (o pacote para três espetáculos custa € 45, ou R$ 138, e o ingresso na bilheteria varia de € 11 a € 20, R$ 34 a R$ 61). A luz recorta e altera o espaço real para criar os territórios da ficção. E quando já na reta final o público consegue ver o edifício em toda a sua dimensão, o prazer de apreciá-lo é azedado pela cena de uma visita guiada entre personagens com palavras que jamais estariam na língua de um profissional do turismo.

Há que se registrar a trilha sonora de Thomas Turine. Ainda que a onipresença da música soe excessiva, os sons incidentais e a perfeita execução técnica intensificam e ampliam sentidos, como o barulho de forte intensidade que se faz ouvir em momentos-chave e sugere que um avião atravessa o prédio em alta velocidade de uma lateral a outra.

Sonoridade, desenho de luz, texto e direção convergem para instaurar um levante em uma das sínteses críticas mais felizes do espetáculo. Em meio ao aparente caos que cerca o público – estrondos de bombas, correria, gritos, objetos lançados ao ar ou empilhados em barricadas – é possível detectar elementos elaborados para remeter a diferentes momentos históricos, da Queda do Muro de Berlim às recentes manifestações brasileiras, dado que mesmo o estrangeiro pode identificar na pichação FIFA go home grafitada com projeção luminosa, em meio a muitas outras, nas paredes do edifício da Bolsa.

Em plano alto, em meio às colunatas da arquitetura, numa imagem que remete à sacada dos palácios, surge apavorada a funcionária sem importância do consulado de um país qualquer de terceiro mundo acompanhada do cônsul. Em minutos, ela passa do susto à adesão leviana ao motim, e dai ao discurso improvisado. Num impulso, recria como sua uma frase que transforma em bordão, fruto de ideia recém-ouvida e mal digerida. Mas se faz ouvir pela turba (crítica ao esvaziamento da política pelo marketing?) E eis que a voz oportunista ressoa na multidão. E logo será apropriada e alterada institucionalmente. Uma cena que alcança alta densidade na articulação entre diferentes recursos, com destaque para a atuação da atriz Luciana Schwinden, louvável na precisão com que realiza os grandes saltos entre estados emocionais dessa personagem.

A estreia de Dizer o que você não pensa em línguas que você não fala se deu apenas três dias após um atentado que matou três pessoas no Museu Judaico de Bruxelas e dois dias após o resultado das eleições no continente que resultaram no avanço dos partidos de direita e de grupos nacionalistas contrários à União Europeia. Nos jornais locais The day after era a manchete mais explícita, porém as demais tinham o mesmo tom pessimista. Nesse ambiente político-social, em alguns momentos o espetáculo soava colado demais à realidade. No entanto vinha sendo preparado há muito. Foram os fatos que se colaram à arte, e não o contrário, imprimindo relevância à produção. Afinal, a encenação é parte de um projeto mais amplo, que abarca diferentes países e é patrocinado pela União Europeia em parceria com o Festival d’Avignon, o Teatro Nacional de Bruxelas e, claro, a Petrobrás que apoia permanentemente o grupo. No difícil equilíbrio entre medo e liberdade, um projeto desse porte e escopo permanecerá possível num futuro próximo?

.:. Mais informações sobre a participação do Teatro da Vertigem no projeto Cities on Stage, aqui.

Ficha técnica:
Texto: Bernardo Carvalho
Direção: Antônio Araújo
Com: Roberto Audio, Jean-Pierre Baudson, Claire Bodson, Didier De Neck, Vanja Godée, Nicolas Gonzales, Vincent Hennebicq e Luciana Schwinden
Coro: Laetitia Augustin-Viguier, Khatia Bissoli, François Ebouele, Laetitia Evens, Daniel Farias, Fabien Magry e Nabil Missoumi
Dramaturgia: Silvia Fernandes e Antonio Duran
Cenografia: Thiago Bortolozzo
Desenho de luz: Guilherme Bonfanti
Música original e criação sonora: Thomas Turine
Trompete: Ludovic Bouteligier
Vídeo: Fred Vaillant
Figurinos: Frédéric Denis e Laurence Hermant
Assistente de direção: Eliana Monteiro e Maria Clara Ferrer
Tradução: Pauline Alphen
Coordenação de produção da companhia Teatro da Vertigem: Roberta Val
Realização de figurino: ateliers du Théâtre National Bruxelles
Coprodoução: Festival d’Avignon e Théâtre National Bruxelles, com participação da companhia Teatro da Vertigem e subsídios do Programme Culture de l’Union Européenne integrados ao projeto Villes en Scène/Cities on Stage

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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